Assinale a opção que apresenta uma afirmativa incorreta sobre o conhecimento popular ou empírico

Olá colegas e Tutores;

Posto aqui neste espaço um estudo de caso diretamente relacionado a gestão em saúde; de autoria de:

Fernando Borges Mânica Doutor em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito pela UFPR. Professor da Universidade Positivo (UP) e da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Coordenador de Ensino do Instituto ADVCOM. Líder do Grupo de Pesquisa Liberdades Públicas e Direitos Econômicos da UP. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Terceiro Setor e Responsabilidade Social (NEPETS) da UTP. Procurador do Estado e Advogado. 

extraido de: http://fernandomanica.com.br/wp-content/uploads/2010/08/Estudo-de-Caso2.pdf em 29/03/2015

A GESTÃO DA SAÚDE PÚBLICA O MUICÍPIO “Q”

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Análise. 2.1 Breves apontamentos acerca da situação concreta do Município “Q”. 2.2. A Gestão Municipal da Saúde no âmbito do Município. 2.2.1 A Constituição Brasileira de 1988 e a Participação Privada nos serviços de Saúde. 2.2.2. A Saúde no Município “Q”. 3. Conclusão. EMETA: Município – Gestão da saúde – operacionalização dos gastos e administração de pessoal – limitações legais – restrições fáticas – Termo de Parceria com OSCIP – legalidade – possibilidade de prestação privada de serviço público de saúde – complementaridade. 1. Introdução Trata-se de estudo de caso com a finalidade de ter por esclarecida a legalidade e constitucionalidade da gestão das ações atinentes ao Sistema Único de Saúde – SUS no Município “Q”, ante os contornos fáticos e os óbices de cunho financeiro e legal que se fazem presentes no âmbito da Administração Pública municipal. De acordo com informações prestadas pelo Município, a forma como tem interpretado a legislação sanitária aplicável e, consequentemente, o modo como tem administrado o sistema público de saúde municipal, gerou indagação pelo Ministério Público, o qual reputa inconstitucional e danoso aos Cofres Públicos o modo de gestão da saúde no Município. Apesar de ter promovido consulta prévia ao Tribunal de Contas de seu Estado, obtendo resposta positiva, o Município acabou por sofrer indagações pelo Ministério Público. Inclusive, ao que se tem notícia, foram ajuizadas duas demandas judiciais pelo D. parquet: uma Ação Civil Pública e uma Ação por Ato de Improbidade Administrativa – ambas questionando a legalidade da forma como o Município “Q” vem gerindo a Saúde em âmbito municipal, em especial no que se refere à participação de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) na execução de determinados serviços. Nesse contexto, constituíram objeto de análise para o presente de estudo de caso com: - cópias dos Demonstrativos de Gastos públicos direcionados à Saúde Municipal; - lista dos servidores municipais atuantes no ramo da saúde; - prestações de contas junto ao Tribunal de Contas Estadual; - cópia de análises técnicas especializadas e monitoramentos sobre a saúde municipal; - cópias dos editais de concurso de projetos; e - cópias dos Termos de Parceria firmados entre o Município e entidades desprovidas de finalidade lucrativa, qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), para atuação vinculada à Saúde Pública do Município. 2. Análise A análise da situação posta em crivo depende, em primeiro lugar, de uma compreensão inicial acerca da situação fática concreta vivenciada no Município “Q”, ainda que bastante breve, imbuída dos eventuais balizamentos específicos que regem sua atuação administrativa enquanto entidade federativa municipal. Somente a partir da moldagem de uma suficiente compreensão fático-legal específica no que tange à posição do Município, poderá ser dado um passo adiante e, assim, compreender a legalidade – ou não – da forma como o Município vem gerindo o Sistema Público de Saúde em âmbito municipal, utilizando em determinados casos parcerias com entidades do Terceiro Setor qualificadas como OSCIP – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. 2.1 Breves apontamentos acerca da situação concreta do Município “Q” O Município de “Q”, pertencente ao território do Estado “X”, com área geográfica de 724,2 quilômetros quadrados, conta, segundo dados oficiais de 2009, com pouco menos de 20.000 (vinte mil) habitantes,1 com projeção de 20.244 habitantes para 2010, de acordo com 1 Dados disponíveis no sítio eletrônico oficial da Prefeitura Municipal. estimativa do IBGE. Pode, portanto, ser considerado Município de pequenas proporções em matéria populacional. Emancipado em 1989 e situado em região costeira, dentre as atividades econômicas principais desenvolvidas está, com destaque, a participação na extração de petróleo de seu subsolo. 2 No campo da saúde, de acordo com a documentação analisada, o Município conta com 8 (oito) Unidades de Saúde da Família, de atenção primária, 1 (um) Centro de Atenção Psicossocial, também de atenção primária, 1 (um) Centro de Especialidades, de atenção secundária, 1 (um) Centro de Regulação, de atenção terciária, e 1 (um) Hospital Municipal, também de atenção terciária, possuindo este área de 7 mil m² e composto por 80 (oitenta) leitos, sendo 6 (seis) de UTI, 14 (quatorze) de maternidade e o restante de internação comum. No chamado PSF – Programa de Saúde da Família –, sua cobertura atinge 100% da população, baseando-se no modelo assistencial de saúde de Cuba. Em Setembro de 2010, a Prefeitura Municipal assinou com o Ministério da Saúde o Pacto Pela Saúde (Portaria GM/MS n. 699/2006), integrando a rede estadual de saúde e comprometendo-se de forma integral com a saúde de sua região. Possui, de acordo com o último levantamento da Secretaria de Saúde Estadual, a menor taxa de mortalidade infantil no Estado. No que concerne ao pessoal responsável pela prestação dos serviços de saúde, possui atualmente: no Hospital Municipal, 147 (cento e quarenta e sete) funcionários aprovados por concurso público, e 31 (trinta e um) contratados por prazo determinado; no Programa Saúde da Família (PSF), conta com 56 (cinqüenta e seis) funcionários, todos aprovados por concurso público; e, como Agentes Comunitários, há 27 (vinte e sete) servidores, todos contratados por prazo determinado. Os gastos com pessoal em saúde correspondem a 15,99% da receita municipal. 3 Por ser Município de baixa densidade populacional, ligeiramente afastado da Capital do Estado, praticamente todas as tentativas de provimento de cargos na área da saúde por meio de concurso público fracassam, ante o não comparecimento de candidatos suficientes para o preenchimento das vagas ofertadas pelo Município. 4 Ademais, além das arrecadações municipais que destina ao custeio da saúde, recebe na área repasses específicos por parte do Fundo Nacional de Saúde (FNS). No total, as 2 Em decorrência de tal participação, recebe, nos termos da legislação abaixo citada, os denominados royalties. 3 Informações retiradas de: Análise Técnica da Saúde, v. 11, Secretaria Municipal de Saúde, 2011; Monitoramento e Avaliação do Sistema Único de Saúde Nível Municipal, v. 8, Secretaria Municipal de Saúde, 2011. 4 Informações retiradas de: Análise Técnica da Saúde, v. 11, Secretaria Municipal de Saúde, 2011; Monitoramento e Avaliação do Sistema Único de Saúde Nível Municipal, v. 8, Secretaria Municipal de Saúde, 2011. “despesas” (investimentos) municipais na área da saúde, desde 2005, têm ultrapassado o patamar dos 50% da arrecadação municipal, o que torna o Município plenamente adimplente com relação às disposições inseridas na Carta Constitucional pela Emenda n. 29/2000, consoante levantamento financeiro realizado pela Prefeitura quando da elaboração do seu Orçamento. Em linhas bastante gerais, essa a situação fática concreta do Município, com enfoque no campo da saúde. 2.2. A Gestão Municipal da Saúde no âmbito do Município A atuação no Município “Q” na área da saúde, derivada da interpretação que tem dado à legislação sanitária, vem sendo combatida por parte do Ministério Público, o que se evidencia pela propositura, por parte deste, de duas demandas judiciais questionando o modo como o Município vem gerindo a Saúde em âmbito municipal e reputando-o, prima facie, de inconstitucional. A grande questão-chave, geradora das controvérsias apontadas, diz respeito à legalidade, ou não, da celebração de Termos de Parceria com entidades despidas de finalidades lucrativas, para que tais entidades promovam atividades de caráter sanitário em âmbito municipal. Trata-se, noutros termos, de saber se e em até que ponto é admitida a prestação de serviços públicos de saúde por entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), cujo regramento legal consta da Lei federal n. 9.790/99. Para avaliar tal indagação, deve ser traçado um itinerário bastante complexo. 2.2.1 A Constituição Brasileira de 1988 e a Participação Privada nos serviços de Saúde A Constituição Brasileira de 1988, diploma carregado de forte inspiração liberal em seu viés econômico, é também, paradigmaticamente, muito influenciada pelos ventos soprados no Pós-guerra. Assim, ao consagrar os Direitos Fundamentais, em seu Título II, é inegável o caráter Social que permeia o texto constitucional. Como não poderia deixar de ser, nessa perspectiva, o Constituinte de 1988 tratou o direito à saúde como direito fundamental dos mais caros ao cidadão, inscrevendo-o expressamente no caput do artigo 6º, in verbis: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Mais adiante, no campo específico da Saúde, o legislador constituinte mais uma vez firmou a importância do direito à saúde, ao prever, no art. 196, sua generalidade e o dever estatal inescusável de sua prestação: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Para assegurar a concretização de tal direito, de forma racionalizada, a própria Constituição também trouxe previsão acerca da administração do sistema público de saúde, o SUS, mediante sua subdivisão nas três esferas de Governo. Trata-se do disposto no art. 198 do diploma constitucional: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. Desse panorama, pode-se notar que a temática da Saúde certamente foi eleita pelo constituinte como uma das mais importantes para a satisfação da população, eleita como direito fundamental social de prestação inescusável pelo Estado Brasileiro. Ante a realidade econômico-financeira do Estado brasileiro, o constituinte notou que a Saúde não poderia ser integralmente assegurada enquanto direito social simplesmente pela atribuição exclusiva de sua prestação ao ente público. Nessa lógica, a própria Constituição, em seu art. 199, deixa expressamente aberta a possibilidade de participação da iniciativa privada na Saúde – o que gera divergências na doutrina quanto à natureza de tal iniciativa: se caracterizada como atividade econômica ou serviço público.5 Veja-se o teor de referido dispositivo: 5 Com base na clássica distinção exposta por Eros Roberto Grau em: GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 12.ed. São Paulo: Malheiros, 2007. Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. Mas o Constituinte foi além e, além de permitir a participação da iniciativa privada nos serviços de saúde, autorizou também a participação privada na prestação de serviços públicos de saúde. Trata-se do contido no parágrafo 1º do art. 199: § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. As duas hipóteses (art. 199, caput e art. 199, §1º) definitivamente não se confundem. Isso porque, na cabeça do art. 199, o Constituinte previu a INICIATIVA privada na prestação de serviços de saúde, o que é realizado pelo particular de forma lucrativa e sob regime jurídico de direito privado (ainda que sujeito à regulação estatal). Exemplo clássico dessa hipótese é a abertura de hospital privado, administrado inteiramente por particulares. Ao revés, o §1º do art. 199 traz disposição diversa: aqui, o particular não age por iniciativa sua, mas sim por iniciativa do Estado. É o Estado, após notar que o sistema público de saúde precisa de melhoramentos, busca no particular a solução para a correção do problema, contratando a prestação complementar de serviços de saúde. Por ser o particular, neste caso, parceiro do ente público que estará submetido ao regime jurídico público dos contratos e convênios públicos. Neste caso, a remuneração do particular decorrerá dos serviços que efetivamente prestar para o SUS, em caráter complementar, e terá como referência o montante contratado/conveniado. Não senão por isso, há doutrinadores que, partindo da distinção entre as espécies de atividade econômica em sentido amplo elaborada por Eros Grau,6 qualificam a prestação privada do caput do art. 199 como atividade econômica, ao passo que a atuação do §1º deste mesmo artigo consubstanciaria verdadeira hipótese de prestação de serviço público, em caráter complementar, por particular conveniado com o Estado. Mediante rápida análise, portanto, é fácil notar que a participação privada no âmbito dos serviços públicos de saúde (SUS), prevista no art. 199, §1º da CF88, é hipótese expressamente autorizada – senão até mesmo recomendada – pelo atual diploma constitucional brasileiro. Nessa senda, o artigo 197 da Constituição Federal é categórico ao prever: 6 GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 1990. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Referida norma deixa assente de qualquer dúvida a possibilidade de prestação privada de serviços de saúde no âmbito no SUS, já que prevê a possibilidade de que as ações e serviços de saúde sejam executados diretamente, pelo Poder Público, ou indiretamente. Ora, diretamente significa a prestação por ente da Administração Pública Direta e indiretamente significa por meio de um terceiro, que apenas pode ser um agente privado alheio aos quadros da Administração Pública. Além disso, ao final do dispositivo a Constituição ainda faz referência à prestação de serviços de saúde por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, que o farão de modo terceirizado pelo Estado (como expressamente previsto na parte inicial do dispositivo), na condição de serviço público; ou de modo autônomo, como atividade privada de relevância pública. É, portanto, inquestionável constitucionalmente a possibilidade de prestação privada de serviços públicos de saúde: a Carta expressamente autoriza, em diversos de seus dispositivos, tal compreensão. Nesse prisma, não poderia ser diverso o entendimento emanado do Supremo Tribunal Federal, ao referir-se ao artigo 197 da Constituição Federal: (...) Não apenas não há, no dever estatal para com a saúde, obrigação de prestação estatal direta, mas, ao contrário, a expressa previsão de sua prestação mediante colaboração de particulares, embora sujeitos à legislação, à regulamentação, à fiscalização e ao controle estatais.7 Noutra oportunidade, quando do julgamento do mérito da ADIN 1923 (a qual impugna lei que trata de outro meio de parcerias com a iniciativa privada – as Organizações Sociais), a mesma Corte Excelsa foi categórica em admitir as parcerias na saúde. Senão, veja-se o que fez consignar em seu voto o relator do feito, Ministro Carlos Ayres Brito: Quanto à possibilidade de destinação de recursos públicos às entidades privadas, exercentes de atividades de relevância pública, também não vacila a Constituição Federal, ainda que imponha a 7BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 1923-5/DF, Tribunal Pleno, Relator Originário Min. Ilmar Galvão, Relator Min. Eros Grau, Diário de Justiça da União, 21 set. 2007. observância de certos requisitos. São evidências disso: a) a participação de instituições privadas no sistema único de saúde, mediante contrato de direito público ou convênio (§ 1º do art. 199 da CF); (...) Nesse amplo contexto normativo, penso já se poder extrair uma primeira conclusão: os particulares podem desempenhar atividades que também correspondem a deveres do Estado, mas não são exclusivamente públicas. Atividades, em rigor, mistamente públicas e privadas, como efetivamente são a cultura, a saúde, a educação, a ciência e tecnologia e o meio ambiente. 8 De igual inspiração, o Min. Luiz FUX deixou consignado que a ideologia constitucional é aquela que deve prevalecer. Destarte, além da forma, deve ser considerado também – e principalmente – o conteúdo. No caso do direito fundamental à saúde, este deve ser, portanto, atendido com base no ferramental que a própria Constituição prevê. Eis o que dispõe o voto lavrado pelo Ministro: A atuação da Corte Constitucional não pode traduzir forma de engessamento e de cristalização de um determinado modelo pré-concebido de Estado, impedindo que, nos limites constitucionalmente assegurados, as maiorias políticas prevalecentes no jogo democrático pluralista possam pôr em prática seus projetos de governo, moldando o perfil e o instrumental do poder público conforme a vontade coletiva. (...) Disso se extrai que cabe aos agentes democraticamente eleitos a definição da proporção entre a atuação direta e a indireta, desde que, por qualquer modo, o resultado constitucionalmente fixado – a prestação dos serviços sociais – seja alcançado. Daí porque não há inconstitucionalidade na opção, manifestada pela Lei das OS’s, publicada em março de 1998, e posteriormente reiterada com a edição, em maio de 1999, da Lei nº 9.790/99, que trata das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, pelo foco no fomento para o atingimento de determinados deveres estatais. 9 Ora, até mesmo em face da fundamentalidade do direito à saúde, a aplicação de tal entendimento torna-se ainda mais evidente. Alguns tribunais pátrios já sinalizam tal compreensão, de acordo com a qual no centro da esfera hermenêutica deve constar o direito fundamental à saúde, cuja garantia não pode ficar à mercê de entraves formais despidos de utilidade.10 Todavia, não é correto concluir, de tudo quanto foi exposto acima, que a Constituição de 1988 deu ampla e irrestrita liberdade ao Administrador Público, de modo que este pudesse buscar no setor privado uma fonte de parcerias ampla e irrestrita. Ao contrário, a possibilidade de prestação privada de serviços públicos de saúde apresenta, no texto 8BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 1923 – DF, Relator Ministro Carlos Brito. 9BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 1923 – DF, Relator Ministro Carlos Brito. 10Sobre o tema: SÃO PAULO (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento n.o 627.715-5/3-00 – SP. Relator: Des. Lineu Peinado. 07 de agosto de 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2008. constitucional, uma importante – e controvertida – delimitação. E tal limitação encontra-se expressa no §1º do art. 199 do diploma constitucional, acima transcrito, quando prevê tal diploma que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde. A menção do art. 199, §1º da CF é ratificada pela Lei Orgânica da Saúde – Lei n. 8.080/1990, art. 4º, §2º, que assim dispõe: § 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar. Trata-se do que se convencionou denominar de princípio da complementaridade, de acordo com o qual somente se admite a prestação privada no campo do sistema único de saúde caso tal atuação se dê de forma complementar à atuação direta do Poder Público. A doutrina constitucionalista especializada digladia-se no tocante à conceituação do que seja a “complementaridade” exigida pelo texto constitucional, o que encontra importantes conseqüências quando da qualificação, no caso concreto de determinado ente federativo, das ações de saúde prestadas por entes particulares como complementares ou não. Tamanha a importância do tema que, a depender da interpretação que se dê ao termo “complementar”, a atuação do ente privado na prestação de serviços públicos de saúde poderá ser considerada inconstitucional e, portanto, impugnável judicialmente por iniciativa de qualquer do povo (Ação Popular) ou do Ministério Público (Ação Civil Pública e Ação por Ato de Improbidade Administrativa). Nessa perspectiva, a Lei Orgânica da Saúde (LOS) contém, em seu artigo 24, importante inovação não constante do texto constitucional: Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Essa norma verticaliza o §1º do art. 199, demonstrando, ao menos em linhas gerais, o que se deve entender por complementaridade da atuação privada no SUS. Assim, a Lei Orgânica da Saúde define ser participação privada complementar aquela que estiver vinculada aos casos em que houver insuficiência na disponibilidade para a prestação de serviços por órgãos e entidades públicos. Nesse viés, costuma-se entender que para a caracterização da complementaridade na prestação privada de serviço público de saúde, tal prestação deve se dar de forma acessória, suplementar à garantia estatal do direito à saúde, visando a colmatar as deficiências ocasionadas pela insuficiência e/ou indisponibilidade de atuação estatal direta. Como exemplo dessa tendência, pode-se mencionar a Portaria n. 1.034, de 05 de maio de 2010, a qual dispõe sobre a participação complementar dos serviços privados de assistência à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde: Art. 2º Quando as disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o gestor estadual ou municipal poderá complementar a oferta com serviços privados de assistência à saúde, desde que: I - comprovada a necessidade de complementação dos serviços públicos de saúde; e II - haja a impossibilidade de ampliação dos serviços públicos de saúde. A regulamentação infralegal do SUS manteve tal direção, estabelecendo novos limites à participação privada, em especial no que se refere ao argumento de que a participação privada deve ocorrer por meio da utilização da capacidade instalada das entidades privadas prestadoras de serviços públicos. Nesse sentido, a própria Portaria n. 1.034/2010 determina que: Art. 3º A participação complementar das instituições privadas de assistência à saúde no SUS será formalizada mediante contrato ou convênio, celebrado entre o ente público e a instituição privada, observadas as normas de direito público e o disposto nesta Portaria. Parágrafo único. Para a complementaridade de serviços de saúde com instituições privadas serão utilizados os seguintes instrumentos: I - convênio, firmado entre ente público e a instituição privada sem fins lucrativos, quando houver interesse comum em firmar parceria em prol da prestação de serviços assistenciais à saúde; II - contrato administrativo, firmado entre ente público e instituições privadas com ou sem fins lucrativos, quando o objeto do contrato for a compra de serviços de saúde; e III - contrato de gestão, firmado entre ente público e entidade privada qualificada como Organização Social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de serviços assistenciais à saúde. Art. 4º O Estado ou o Município deverá, ao recorrer às instituições privadas, dar preferência às entidades filantrópicas e às sem fins lucrativos, observado o disposto na legislação vigente. É interessante trazer à colação, nesse prisma, o entendimento de Floriano de Azevedo Marques Neto, para quem a complementaridade da participação privada na prestação de serviços de saúde deve ser compreendida com fulcro na noção de subsidiariedade, de modo que a iniciativa privada apenas deve prestar serviços públicos de saúde nos casos de deficiência do Estado em fazê-lo diretamente – e não o contrário. Nas palavras do autor: Tanto a Constituição quanto a lei estabelecem de que forma tal participação se dará. Ela se relaciona à idéia de insuficiência da rede pública de saúde, ou seja, à idéia de subsidiariedade da rede privada em relação à rede pública, servindo para suprir deficiências ou insuficiência da última. Assim é que o artigo 199, § 1.o , da Constituição estabelece expressamente que a participação da iniciativa privada no Sistema Único de Saúde se dará "de forma complementar.11 Em que pese o entendimento predominante acerca da prioridade a ser conferida à prestação direta de serviços públicos pelo Estado, não se pode olvidar que a participação privada, por diversos motivos, pode tornar-se essencial. Tal essencialidade decorre da própria natureza dos serviços de saúde – os quais têm como característica a indução de demanda pelo aumento da oferta – e da disciplina constitucional que prevê sua prestação de modo universal, integral e gratuito. Sob outro ângulo, ao tratar da complementaridade da participação privada no SUS, a Constituição brasileira não pretendeu atribuir caráter precário, transitório e instável aos vínculos firmados entre o Estado e entidades privadas prestadoras de serviços. Pelo contrário, o que buscou a Constituição de 1988 foi impor o regime jurídico compatível à prestação privada de serviços públicos de saúde. Sobre o tema já tivemos a oportunidade de refletir, em nossa Tese de Doutoramento defendida na Universidade de São Paulo, resultante em livro em que assim consignamos: [...] a interpretação da Constituição deve levar em conta a realidade e deve ter como objetivo a máxima efetivação dos direitos fundamentais. Desse modo, considerando que a hipótese de maior eficiência na garantia do direito à saúde pode ser obtida por meio da prestação privada, não se justifica manter tal entendimento. A fixação dos limites entre a prestação estatal direta de serviços de saúde e sua prestação indireta, por meio de parcerias com a iniciativa privada, não pode ser encontrada na expressão geral, abstrata e despida de conteúdo como é a forma complementar da participação privada. Insistir em tese oposta à ora defendida não apenas gera insegurança jurídica – decorrente das ações patrocinadas, sobretudo, pelo Ministério Público –, mas também conduz a uma interpretação equivocada, segundo a qual a participação privada no sistema público de saúde deve ser tratada como transitória e improvisada, o que a tornaria instável e precária. Tais características dos vínculos firmados entre a Administração Pública e os prestadores privados constituem um dos graves problemas que afrontam os serviços públicos de saúde no Brasil. A participação privada nos serviços de saúde, como demonstra a experiência histórica e internacional é indispensável, mas tanto mais se apresenta útil quanto mais estáveis e seguros os vínculos que a disciplinam. Apenas um Direito Administrativo apto a lidar com a complexidade atual do setor de saúde possibilitará a existência de uma Administração Pública forte e um Estado eficiente na garantia dos direitos fundamentais – especificamente o direito à saúde. 12 11MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Público e privado no setor de saúde. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, ano 3, n.9, p.112, jan./mar. 2003. 12 MÂNICA, Fernando Borges. O Setor Privado nos Serviços Públicos de Saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 162-163. Nesse contexto, pode-se afirmar que, com os balizamentos acima traçados, ao permitir expressamente a prestação privada nos serviços públicos de saúde, a Constituição abre a possibilidade da assim chamada “terceirização de atividade-fim” no campo da saúde. A terceirização de atividades-fim pela Administração Pública é hipótese amplamente vista pela doutrina – e mesmo pela legislação – como inconstitucional, consistindo em caso no qual o Poder Público, visando desamarrar-se do regime jurídico administrativo a que está submetido, contrata servidores públicos pela via indireta, utilizando-se de pessoa interposta, em evidente burla à exigência constitucional do concurso público. Tal atitude por parte da Administração Pública é condenável em praticamente todos os campos de sua atuação, consistindo em hipótese flagrantemente inconstitucional (art. 37, II). 13 No campo da Saúde, entretanto, a questão deve ser examinada sob outro ângulo. A mera interposição de mão-de-obra não deve ser admitida. No entanto, a terceirização de atividade-fim pela Administração Pública (terceirização de serviços), por expressa determinação constitucional, não é ilícita. Isso porque, à exaustão do já exposto, o art. 199, §1º da Carta Constitucional prevê com todas as letras que é permitida a participação privada em serviços públicos de saúde (no SUS, portanto), disposição esta que é repetida na Lei Orgânica da Saúde. Como visto, a única limitação disposta, tanto constitucionalmente quando infraconstitucionalmente, é que tal prestação privada se dê em caráter complementar. E, como também já se analisou, tal complementaridade vincula-se às hipóteses em que o Poder Público não tem condições de atender de forma suficiente à população prestando o serviço de saúde apenas de forma direta. Ora, não prevê em momento algum a Constituição e nem a legislação infraconstitucional pertinente que a prestação privada de serviços públicos de saúde, além de complementar, deve se dar apenas com relação às atividades-meio da saúde. Muito menos prevê que o caráter de complementaridade está vinculado a tal aspecto. Mesmo porque seria absurdamente ilógico ao constituinte prever a possibilidade de prestação privada complementar em serviços públicos de saúde, e ao mesmo tempo restringir tal prestação às atividades-meio: se a complementaridade da prestação privada se reporta justamente aos casos em que o Poder Público não tem condições de prestar diretamente o 13 “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. serviço, é óbvio que o ente privado, nesses casos, desempenhará atividades-fim de saúde no lugar do Estado, para bem atender a população. De nada adiantaria o art. 197 e art. 199, §1º da Constituição caso se admitisse apenas a terceirização de atividades-meio, como por exemplo conservação e limpeza. Se a prestação privada se restringisse a tais áreas, sequer se pode falar em prestação privada de serviços de saúde! Trata-se de mera prestação de serviços acessórios, que certamente não foram alvo do raciocínio constituinte quando da redação do §1º do art. 199. É o que concluímos em obra conjunta com Gustavo Justino de OLIVEIRA: No âmbito da saúde, conforme demonstrado,é expressamente permitida a prestação do serviço por terceiros. Admite a Constituição de 1988, peremptoriamente, a terceirização (em sentido amplo) das ações e serviços de saúde. 14 Nesse sentido, retoma-se a disciplina infralegal sobre o tema, em específico a Norma Operacional Básica - NOB/SUS n.o 01/96, em seu Item n.o 4, que trata do Sistema de Saúde Municipal, dispondo expressamente que: Os estabelecimentos desse subsistema municipal, do SUS-Municipal, não precisam ser, obrigatoriamente, de propriedade da prefeitura, nem precisam ter sede no território do Município. Suas ações, desenvolvidas pelas unidades estatais (próprias, estaduais ou federais) ou privadas (contratadas ou conveniadas, com prioridade para as entidades filantrópicas), têm que estar organizadas e coordenadas, de modo que o gestor municipal possa garantir à população o acesso aos serviços e a disponibilidade das ações e dos meios para o atendimento integral. Isso tudo implica afirmar que, independentemente de a administração (gerência) dos estabelecimentos prestadores de serviços de saúde competir a ente estatal ou privado, a gestão de todo o sistema de saúde é que é, necessariamente, de competência do poder público e exclusiva desta esfera de governo, respeitadas as atribuições do respectivo Conselho e de outras diferentes instâncias de poder.15 14 MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA, Gustavo H. Justino de. Parcerias na Saúde – Reflexões sobre a Emenda Constitucional nº 51/2006 E a Lei Federal nº 11.350/2006. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 33-34. 15 Nos termos da NOB 01/96, aprovada pela Portaria GM/MS n.o 2.203/96, são atribuídos significados diversos para os termos gerência e gestão. Enquanto a gerência é conceituada como sendo a administração de uma unidade ou órgão de saúde, (ambulatório, hospital, instituto, fundação, etc.), que se caracteriza como prestador de serviços ao Sistema, a gestão é a atividade e a responsabilidade de dirigir um sistema de saúde (municipal, estadual ou nacional), mediante o exercício de funções de coordenação, articulação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria. Nesse sentido, o ato normativo em referência qualifica como gestores do SUS os Secretários Municipais e Estaduais de Saúde e o Ministro da Saúde, que representam, respectivamente, os governos municipais, estaduais e federal. De qualquer modo, importa ter claro que, nos termos do artigo 198, inciso I, da Constituição Federal, a gestão do sistema de saúde em cada um dos níveis federativos deve ser única e, evidentemente, realizada pelo Poder Público. Tal dispositivo Ora, essa compreensão é evidente e foi bem explicada pelo doutrinador francês Gilles GUGLIELMI, para quem: "Os órgãos encarregados da gestão são sempre aqueles de uma pessoa pública, pois o serviço público é uma atividade de interesse geral, garantido ou assumido por uma pessoa pública".16 Nessa medida, cumpre pontuar que o sistema público de saúde abrange muito mais do que simplesmente a prestação de serviços de saúde em si. Senão veja-se o que dispõe o artigo 200 da Constituição Republicana, ao trazer as ações públicas passíveis de garantir a saúde à população: Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. Note-se daí, então, que dentre as ações de saúde passíveis de serem tomadas pelo Poder Público, a prestação propriamente dita de serviços públicos de saúde é apenas uma delas. Nesses serviços, nos termos da Constituição, admite-se tanto a prestação pública quanto a prestação privada, desde complementar. Ao privado é plenamente possível gerenciar a prestação de serviço público de saúde (por exemplo, mediante gestão de um Hospital Público Municipal), desde que seja reservada ao Poder Público a gestão do sistema de saúde como um todo. Afinal, a decisão do ente público de firmar parcerias com o setor privado para a prestação de serviços públicos de saúde já constitui, em si, atitude que compete exclusivamente ao ente público, em ato que manifesta a gestão de saúde pública. Ou seja: a Constituição Federal, ao expressamente prever a possibilidade da participação privada complementar na prestação de serviços públicos de saúde – no âmbito do SUS, portanto –, não vedou a assim chamada terceirização de serviço no campo da saúde, visto que aqui, ao contrário dos demais campos, não ocorre burla à exigência constitucional constitucional não determina, entretanto, que a execução dos serviços seja desempenhada pela iniciativa privada. 16 GUGLIELMI, Gilles. Introduction au droit des services publics. Paris: EJA, 1994. p.69 do concurso público, mas sim, ao contrário, concretização de permissivo constitucional expresso. Destarte, entende-se se plenamente possível sustentar que da forma complementar de participação privada nos serviços públicos de saúde, prevista no §1º do art. 199 da Constituição, não é possível extrair limitação à esfera de atuação estatal direta e à esfera passível de atuação privada contratada ou conveniada. Trata a previsão apenas da possibilidade de prestação tanto de uma forma (direta) quanto de outra (indireta), desde que, no caso desta, revista-se dos critérios de complementaridade. 2.2.2. A Saúde no Município “Q” Finalmente, analisados os dispositivos constitucionais, legais e infralegais que tratam da Saúde na Constituição de 1988 e avaliado o cabimento da prestação privada complementar, de serviços públicos de saúde, desemboca-se no cerne do presente estudo. Passa-se, pois, a enfrentar a situação da gestão municipal da saúde no Município “Q”, a fim de perquirir acerca da licitude da metodologia que vem se utilizando o Município para a prestação de serviços públicos de saúde. De início, cumpre fazer um breve histórico, a fim de que se compreenda como evoluiu a saúde pública no Município “Q”. No Plano Estratégico denominado Saúde da Família, o Município contava, em 1994, com 4 (quatro) equipes multiprofissionais, seguindo o modelo assistencial de Cuba. Em 1996, tal trabalho foi desarticulado em decorrência de problemas estruturais, em especial a insuficiência de pessoal. Em 2001, as 4 (quatro) equipes foram reestruturadas, o que não deu conta da nova realidade do Município por conta do aumento populacional. Diante disso, em 2003 foi expandida toda a rede assistencial, com a instauração de mais 2 (duas) unidades. A despeito disso, a cobertura assistencial da atenção básica no Município ainda estava muito aquém do exigido pelo SUS (70%), contando o Município com apenas 27% (vinte e sete) de cobertura. Ante essa situação, e tomando por base sua realidade orçamentária e de pessoal, o Município “Q” encontrou uma alternativa que considerou juridicamente plausível, após ter realizado Consulta junto ao Tribunal de Contas do Estado “X”:17 a celebração de termos de parceria com OSCIPS, consoante previsto na Lei n. 9.790/99, para prestação de serviços públicos de saúde em caráter complementar. 17 Consulta n. 200.514-03/2003. Em 2004, a partir do início de vigência das parcerias – realizadas após procedimento licitatório – o Município expandiu o atendimento do PSF para todas as famílias mais afastadas, inclusive da área rural do município. A cobertura assistencial, que era de 27% (vinte e sete por cento), passou, em apenas um ano de parceria, para 81% (oitenta e um por cento), muito acima do padronizado pelo SUS. Finalmente, em 2006, contando com o auxílio dos Termos de Parceria com as OSCIPS, o Município atingiu a meta, contando com cobertura assistencial de 100% (cem por cento) na atenção básica. Diante desse panorama, pode-se notar que a celebração de termos de parceria entre o Município e OSCIPs, a partir de 2004, imprimiu uma aceleração assombrosa à prestação de serviços públicos de assistência à saúde no Município. Os dados empíricos demonstram cabalmente que as parcerias com as OSCIPs, entidades privadas despidas de finalidade lucrativa, foi imprescindível para a expansão da cobertura de atenção básica à saúde, de 27% (vinte e sete por cento) para 100% (cem por cento) em menos de três anos. Após tais parcerias, o Município “Q”passou a ocupar o 3º Lugar Estadual em matéria de Qualidade de Saúde, consoante estudo de 2010, ocupando o 1º Lugar Regional (região norte de seu Estado). De outro prisma, no que toca ao Hospital Municipal, responsável pela atenção terciária à saúde dos munícipes, a celebração de parcerias com OSCIPS obteve resultados igualmente satisfatórios. Em 2003, antes da celebração das parcerias, o Hospital Municipal funcionava em prédio antigo, contando com 40 (quarenta) leitos. Com a economia de recursos decorrente das parcerias com as OSCIPS, em 2004 tornou-se viável a construção de novo prédio para o Hospital, o qual passou a contar com 74 (setenta e quatro) leitos - quase o dobro do que possuía anteriormente. Em 2007, inaugurou-se a Unidade de Tratamento Intensivo no Município, contando com 6 (seis) leitos, totalmente custeada pelo Município. Em 2010, aderiu ao Pacto da Saúde, disponibilizando seus leitos para toda a região norte fluminense. No corrente ano, credenciou-se junto ao Ministério da Saúde, para obtenção de repasses financeiros que deverão auxiliar no custeio das despesas com a UTI. Em 2010, o Hospital atendeu a 115.582 (cento e quinze mil, quinhentos e oitenta e dois) pacientes. A celebração dos Termos de Parceria com as OSCIPS, desde 2004, permite a prestação de serviços médicos complementares pelo parceiro privado, sendo que a gestão do hospital é realizada integralmente pela Administração Municipal, em conjunto com a Coordenação de Controle, Avaliação, Regulação e Auditoria. No Hospital, aproximadamente 70% (setenta por cento) dos servidores são estatutários do Município, e 30% (trinta por cento) pertencem aos quadros da OSCIP, parceira do Poder Público na prestação dos serviços de saúde em caráter complementar. Nota-se, portanto, que a celebração de parcerias entre o Município e as OSCIPs para pestação de serviços públicos de saúde mostra-se bastante exitosa, tendo a saúde pública do Município atingido níveis de progressão bastante satisfatórios em termos de cobertura e qualidade assistencial a partir de 2004, quando iniciaram-se as parcerias. Resta, finalmente, avaliar se a gestão municipal de saúde, fundada que é na realização de parcerias com Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, é válida em termos formais, ou seja, se o instrumento do Termo de Parceria é juridicamente apto e constitucional para aprimorar a prestação de serviços públicos de saúde em âmbito municipal. Nessa medida, tudo quanto foi dito acima, no que diz respeito à disciplina constitucional da prestação de serviços públicos de saúde, tem aqui plena aplicação. A prestação de serviços públicos de saúde, dever inescusável do Estado nos termos da Constituição, é meio de concretização de um direito fundamental social dos mais caros à população brasileira. Como tal, a carência de sua prestação, ainda que parcial, pode acarretar imensos prejuízos aos cidadãos. Por isso, preocupado com a possibilidade de o Estado, por qualquer motivo que seja – orçamentário, jurídico, administrativo ou material – abster-se de prestar o serviço de saúde, o Constituinte de 1988 deixou expressamente prevista a possibilidade de prestação privada de serviços públicos de saúde – no âmbito do SUS, portanto – colocando apenas um limitador: que tal prestação se dê de forma complementar. Tal complementaridade, como também visto acima, reporta-se aos casos em que o Estado não tem condições materiais de atender com suficiência toda a população. A atuação privada no serviço público de saúde é, portanto, condicionada à celebração de parceria com o Poder Público competente, que poderá delegar parcela da prestação de serviços públicos assistenciais à entidade privada, contanto que cinja tal prestação de modo restrito, para que atenda ao caractere da complementaridade. Numa análise bastante exaustiva, parece que foi exatamente esse o sentido trilhado pelo Município quando da opção pela celebração de Termos de Parceria com as OSCIPS. Diante: (i) da insuficiente cobertura asssitencial no Município (menos de 30% [trinta por cento], quando o Ministério da Saúde exige ao menos 70% [setenta por cento]); e (ii) tendo em vista a situação do Hospital Municipal (que ocupava prédio antigo, em ruínas, e não oferecia número de leitos suficientes à população municipal), o Município efetuou consulta junto ao Tribunal de Contas do Estado, a fim de saber se era viável a celebração de Termos de Parceria com OSCIPS para a complementação do defasado sistema municipal de saúde. Atento à situação concreta do Município, o TCE, sabidamente, houve por bem opinar no sentido da plausibilidade da celebração das parcerias em questão. O acerto da opinião do TCE deve-se a vários motivos. O primeiro deles, já analisado acima, é a possibilidade – ditada pela própria Constituição – de prestação privada de serviço público de saúde, hipótese em que o particular presta serviços não no âmbito da iniciativa privada, e sim no âmbito do Sistema Único de Saúde, de forma complementar à atuação direta do ente público. O segundo motivo, e talvez o mais importante, é que, em conformidade com a exigência Constitucional, a prestação de serviços de saúde pela OSCIP ao Município “Q” ocorre, efetivamente, de forma complementar. Como visto acima, a noção – tanto legal quanto doutrinária – de complementaridade na prestação de serviços públicos de saúde vincula-se a dois aspectos principais: (i) insuficiência de recursos estatais (logo, insuficiência da prestação material de serviços de saúde pelo Poder Público, diretamente); (ii) subsidiariedade da prestação privada em relação àquela feita pelo Poder Público. Ora, analisando cuidadosamente os Termos de Parceria celebrados entre o Município e a OSCIP parceira, escolhida após procedimento licitatório, é nítido constatar que eles têm como real objetivo complementar os serviços públicos de saúde prestados pelo ente estatal, o que faz por meio de projetos que são desenvolvidos em setores em relação aos quais o Município não possui condições administrativas, técnicas ou financeiras de atuar. Nessa medida, nenhum dos termos de parceria celebrados entre o Município “Q” e a OSCIP mostra-se apto a descaracterizar a complementaridade do serviço prestado pelo parceiro privado: em todos eles, consta específica previsão de qual a ação de saúde que está sendo atribuída a encargo do ente privado, não havendo expressão genérica que possa sequer implicar uma inconstitucional delegação in totum do serviço municipal de saúde à OSCIP. Ao contrário, todos os termos de parceria firmados contêm objetos específicos, bem delimitados, entregando à esfera de administração da OSCIP parcela pequena da prestação de serviços de saúde oferecidos pelo Município. A subsidiariedade dos serviços prestados pela OSCIP é evidente, já que o Município presta diretamente quase 70% (setenta por cento) dos serviços públicos de saúde municipais, conforme se verifica da documentação que instruiu o pedido de parecer. Ademais, cumpre notar que a contratação da OSCIP para a prestação dos serviços de saúde no Município “Q” se deu de forma plenamente legal, e mais, devidamente motivada. Nessa senda, a motivação do ato de celebração dos Termos de parceria reside em dois fatores fundamentais. Como sabido, nos termos da lei n. 9.478/97, os Municípios em cujo território se situe zona onde ocorra a exploração de petróleo, pela União ou suas concessionárias, recebem os chamados royalties, parcelas que funcionam como compensação financeira por tal extração. É o caso do Município “Q”. Procurando utilizar tais verbas da melhor forma possível, seguindo as normas financeiras aplicáveis às pessoas jurídicas de direito público, o Município “Q” houve por bem aplicá-las na saúde. No entanto, viu-se diante de inexorável óbice de ordem legal, consubstanciado no art. 8º da lei n. 7.990/89, em redação dada pela lei n. 8.001/90: Art. 8º O pagamento das compensações financeiras previstas nesta Lei, inclusive o da indenização pela exploração do petróleo, do xisto betuminoso e do gás natural será efetuado, mensalmente, diretamente aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e aos órgãos da Administração Direta da União, até o último dia útil do segundo mês subseqüente ao do fato gerador, devidamente corrigido pela variação do Bônus do Tesouro Nacional (BTN), ou outro parâmetro de correção monetária que venha a substituí- lo, vedada a aplicação dos recursos em pagamento de dívida e no quadro permanente de pessoal. A legislação mencionada, aplicável ao Município, veda expressamente a utilização dos recursos provenientes da distribuição dos royalties para o pagamento de despesas com pessoal. Diante disso, a alternativa mais viável encontrada pelo Município foi, justamente, aquela aqui discutida, consistente na celebração de termos de parceria com entidade sem finalidade lucrativa, repassando a ela os valores para que atuasse complementarmente na área da saúde municipal. Tudo em estrita observância ao regramento constitucional da saúde, acima descrito. O segundo fator utilizado para motivação do ato do Município possui natureza fática: trata-se da quase que inevitável deserção dos concursos públicos realizados no Município para provimento em cargos de saúde, nos quais praticamente não acudiam interessados. Nessa medida, em praticamente todos os certames abertos pelo município, orientados à contratação de médicos, enfermeiros, etc., o número de candidatos que compareceu (até mesmo pela pequena densidade populacional do Município) não atendeu às necessidades da Administração Pública. A decisão do Município de celebrar os termos de parceria com OSCIPS para a prestação de serviços públicos complementares na área da saúde ao invés de prestá-los diretamente, deu-se, portanto, estritamente pautada nos balizamentos do ordenamento jurídico nacional e nas circunstâncias fáticas que compõem a sua realidade enquanto Município. De mais a mais, é de bom alvitre frisar que, ao que parece, não atua a OSCIP como mera intermediadora de mão de obra para o ente municipal, e sim como sua verdadeira parceira, complementando a prestação de serviços públicos de saúde no âmbito do SUS e, assim, contribuindo para a elevação do nível de qualidade e de cobertura da saúde municipal, consoante demonstram os dados acima assinalados. Assim, por prestar serviço público de saúde em caráter complementar no Município, a OSCIP atende aos requisitos que autorizam a participação privada na saúde, na dicção do art. 199, §1º da CF88. É, pois, plenamente legal e constitucional a prestação complementar de serviços públicos gratuitos de saúde no Município “Q” por entidades qualificadas como OSCIPs, de acordo com os termos de parceria firmados mediante prévio processo licitatório. 3. COCLUSÕES Ante tudo quanto foi exposto, considerando que: (i) A Constituição expressamente autoriza a prestação privada complementar de serviços públicos de saúde; (ii) A complementaridade dos serviços reporta-se à insuficiência de cobertura pelo ente público e pela subsidiariedade de sua prestação pelo ente privado; (iii) É plenamente possível contratar com o parceiro privado a prestação de serviços de saúde que consubstanciam “atividade-fim” (terceirização de serviço) da área em questão, sob pena de ineficácia absoluta do permissivo constitucional; (iv) O Município não possui condições administrativas e nem financeiras para prestar integralmente o serviço público de saúde, ante os balizamentos de seu caso específico (concursos desertos, royalties, etc.); (v) A prestação de serviços públicos de saúde pela OSCIP, parceira do Município após assinatura de Termo de Parceria precedido de procedimento licitatório, se dá em caráter complementar; (vi) O próprio TCE após consulta do Município, emitiu parecer opinando no sentido da legalidade da celebração de Termos de Parceria entre o Município “Q” e OSCIP para prestação de serviços complementares de saúde. Conclui-se, bem avaliada a situação do Município e toda a documentação que instruiu o presente estudo, ser plenamente constitucional e regular a metodologia que vem utilizando o Município desde 2004 para gestão do sistema municipal de saúde, mediante celebração de termos de parceria com OSCIP para prestação de serviços públicos de saúde, os quais, no caso, mostram-se plenamente regulares por atender adequadamente ao requisito da complementaridade, de modo que podem (devem) ter sua celebração/renovação assegurada, até mesmo pelos elogiáveis avanços que tais parcerias têm propiciado no campo da saúde municipal. No entanto, a despeito disso, não é demais acentuar que, para que permaneça válida a conclusão aqui sacada, o Município “Q” deverá continuamente observar uma série de critérios no decorrer do termo com a OSCIP parceira. Em, destaque, deve o Município atentar para os seguintes dados: • Devem ser observados, como ocorreu na seleção da atual OSCIP parceira, os princípios da licitação para seleção do ente privado, mediante concurso de projetos; • Os termos de parceria devem ser firmados sempre por meio de projetos, com prazos e metas pré-definidos, de modo a proporcionar sua efetiva fiscalização; • Deve haver incessante fiscalização dos termos de parceria celebrados entre o Município e as OSCIPs; • Deve haver responsabilização da entidade privada e também dos fiscalizadores dos termos de parceria por eventuais desvios (tanto desvios de finalidade na atuação da entidade quanto de recursos públicos); • O gerenciamento dos recursos repassados deve ser realizado de acordo com o regulamento próprio de aquisição de bens e serviços elaborado pela OSCIP, nos termos da Lei n. 9.790/99, observados os princípios da Administração Pública; • Não é demais frisar que o serviço público de saúde municipal continua sendo de titularidade do município, que deve garantir sua concretização do modo adequado à população; • A entidade privada contratada não pode servir como mera intermediadora de mão-de-obra, mas é plenamente possível que se torne gerenciadora de determinados serviços, os quais compõem um projeto ou consistem em um serviço que integra o SUS (nos termos do art. 200 da CF). Assim atuando, o Município “Q” demonstra estar agindo em plena consonância com o ordenamento jurídico pátrio no que concerne à garantia de prestação de um dos direitos fundamentais sociais mais caros à população, atitude que, encarada sem preconceitos, demonstra quão saudável pode ser a parceria entre o setor público e o setor privado na área da saúde.