A reprodução dos homens possuem essencialmente uma determinação que é

          CAPÍTULO 1 - TRABALHO E EDUCAÇÃO A educação, sobretudo a escolar, não ocorre independente dos processos e relações da sociedade em geral. Pelo contrário, existe uma conexão entre parte e totalidade que seria equivocado desconsiderar. Sendo assim, e, partindo da centralidade da categoria trabalho na análise de toda e qualquer relação desenvolvida no contexto da sociedade capitalista, e, levando em consideração que o tema central deste estudo é o trabalho voluntário, torna-se impossível empreendê-lo sem antes pinçar dos conceitos da teoria marxiana e marxista, aqueles que se fazem necessários para demonstrar o caráter potencialmente emancipador do trabalho e da educação em geral e o caráter não-emancipador e não-voluntário do trabalho no atual modelo de sociedade, para que seja possível chegar, no segundo capítulo, à compreensão do trabalho voluntário ligado à Responsabilidade Social da Empresa e sua relação com a educação. 1.1- A relação homem, natureza e trabalho, e seu potencial emancipador. O primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições de viver para “fazer história”. Mas, para viver é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. (MARX e ENGELS, 1999, p. 39) Para sobreviver, viver e se reproduzir, o homem necessita produzir as condições de sua existência e ele o faz pelo trabalho, que, na condição de mediação, é a atividade desenvolvida para atingir determinado objetivo. Portanto, o trabalho não se justifica per si, por não se constituir em objetivo final do homem.       A história da humanidade é a história do processo no qual o homem utiliza sua capacidade racional para intervir no meramente natural, segundo seus interesses e necessidades. Sendo assim, o homem submete a natureza ao seu interesse, utilizando a capacidade de antecipar no pensamento, ou seja, idealmente, suas ações, para satisfazer necessidades, tendo em vista os objetivos estabelecidos e levando em consideração o grau de desenvolvimento das forças produtivas em cada momento histórico.       Dito em outros termos: diante da natureza o homem se pronuncia, não aceitando a simples adaptação ao meio. Pelo contrário, o homem o adapta à sua vontade, necessidade e interesse, não sendo indiferente a ele. O homem produz a sua existência pelo trabalho, que é desenvolvido de acordo com objetivos previamente estabelecidos, observadas as condições concretas para tanto.       Marx define trabalho como “atividade adequada a um fim” (MARX, 1996a, p. 202). Entendido nesse sentido, assim como Paro, compreende-se              o trabalho como característica essencialmente humana, como o que identifica o homem e o diferencia do restante da natureza. Isto porque só ele é capaz de estabelecer objetivos, calcados em valores, e buscar sua concretização. Neste sentido, é também o trabalho que empresta ao homem sua característica histórica. O meramente natural não tem história. (PARO, 1997, p. 29)              O trabalho como “atividade adequada a um fim” é uma conceituação que compreende como trabalho toda atividade humana que visa atender necessidades estabelecidas pelo próprio homem, em sua condição de ser histórico, que o distingue dos demais animais, e lhe possibilita ser capaz de atingir objetivos definidos.       Pelo trabalho, como mediação, o homem busca produzir as condições para superar necessidades estabelecidas. O sentido e a causa do trabalho estão portanto fora dele, já que o objetivo do trabalho está na sua possibilidade de liberar o homem para poder dedicar-se a si mesmo. Por isso faz sentido afirmar que o homem trabalha para poupar trabalho, ou que o homem se esforça para poupar esforço.       No processo de trabalho, o homem relaciona-se com a natureza e com outros homens, fator que imprime ao trabalho uma “característica necessariamente social”. (PARO, 1997, p. 30)       O homem pode produzir o necessário à sua existência de forma direta ou indiretamente social. A forma diretamente social ocorre quando o homem sozinho, com sua família ou grupo social produz o necessário para sua sobrevivência ou quando troca diretamente com o outro.       A forma indiretamente social passa a tomar grande proporção e assume predominância na história da humanidade a partir da sociedade mercantil, período no qual o homem vai abandonando a forma de produção apenas para o consumo, passando a produzir para a troca.       A sociedade capitalista baseia-se precisamente na generalização da produção para a troca, portanto da produção na forma indiretamente social. Com isso quer-se dizer que, em geral, na sociedade capitalista, um homem produz determinada mercadoria não para consumi-la, mas para trocar por outra mercadoria, quer para usá-la quer para trocá-la novamente.       Tal situação ocorre a partir do desenvolvimento de um modo de produção no qual a propriedade dos meios de produção passa a não ser mais distribuída entre os próprios produtores dispersos ou organizados entre si, mas a pertencer a uma pessoa ou grupo de pessoas que detenham certa quantia de capital.       A cooperação e a divisão do trabalho na produção fazem com que se produza coletiva e indiretamente determinado produto ou serviço (que é trocado no mercado pelo produto ou serviço de outros trabalhadores), em quantidade muito maior do que se cada trabalhador tivesse que produzir individual e diretamente todos os produtos ou serviços de que necessita para viver.       Esse aumento da produção que a cooperação e a divisão do trabalho na produção propiciam, interessa a qualquer modelo de organização social, e particularmente ao modo de produção capitalista, pelo fato de que, nesse modo de produção, a apropriação da produção é privada a favor dos possuidores de capital.       No processo de trabalho, aquilo que o homem produz para atender necessidades humanas constitui um valor-de-uso, independente da quantidade de trabalho empregado para obter suas qualidades úteis. Trata-se de uma relação de qualidade. Já aquilo que o homem produz com o objetivo de trocar por outra coisa ou mercadoria constitui um valor-de-troca. Trata-se de uma relação de quantidade, já que a quantidade de trabalho empregado na coisa ou mercadoria é que define seu valor-de-troca.       Valor-de-uso é, portanto, a propriedade que determinado bem ou serviço possui de atender necessidades humanas, que se traduz na utilidade que esse bem ou serviço possui e sua condição de valor-de-uso só se realiza com a sua utilização ou consumo. (MARX, 1996a)       Já o valor-de-troca é a propriedade que um bem ou serviço possui de ser trocado por outros. Note-se que, para constituir-se como valor-de-troca, o bem ou serviço tem que ser antes reconhecido como um valor-de-uso para o outro. O valor-de-troca é necessariamente um valor-de-uso para o outro.       Todos os homens nascem igualmente naturais e, no decorrer de sua existência, vão adquirindo e desenvolvendo hábitos, atitudes e valores que modificam e mesmo controlam as suas características naturais. Assim, o processo civilizatório é a história do distanciamento da humanidade de seu estado natural.       José Ortega y Gasset demonstra que o homem não se contenta apenas em sobreviver. Ele quer viver bem, diferente do animal que se contenta com o objetivamente necessário para o simples existir:              No vão que a superação de sua vida animal deixa, dedica-se o homem a uma série de tarefas não biológicas, que não lhe são impostas pela natureza, que ele se inventa para si mesmo. E precisamente a essa vida inventada, inventada como se inventa um romance ou uma peça de teatro, é ao que o homem chama vida humana, bem-estar. A vida humana, pois, transcende da realidade natural, não lhe é dada como lhe é dado à pedra cair e ao animal o repertório rígido de seus atos orgânicos–comer, fugir, nidificar, etc. (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 33)              Tanto é fato que o homem não se contenta em apenas sobreviver, que, diante da constatação de encontrar-se nessa situação, o homem se pronuncia, tentando alterar as condições concretas que o limitam a isso. “O empenho do homem por viver, por estar no mundo, é inseparável do seu empenho de estar bem.” (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 20)       No sentido de que o homem não se contenta em apenas sobreviver, é que Ortega y Gasset afirma que “o homem é um animal para o qual somente o supérfluo é necessário”. (1963, p. 21-2)       Ao criar um valor, que é a expressão de sua vontade, o homem cria, ao mesmo tempo, a possibilidade de estabelecer um objetivo derivado desse valor, que ele busca alcançar pelo trabalho, na sua condição de mediação. (PARO, texto inédito a, p. 7) O trabalho constitui-se, portanto, em atividade necessária ao alcance dos objetivos estabelecidos pelo homem, que, em tese, deveria fazê-lo na condição de sujeito.       Com o desenvolvimento das forças produtivas e a divisão social do trabalho, o homem pôde ser capaz de produzir cada vez mais excedente de produção. Em tese, esse excedente de produção permite ao homem se libertar da condição de trabalhar apenas para sobreviver, propiciando estabelecer, cada vez mais, novos objetivos. No plano prático, paradoxalmente, o excedente produzido pelo próprio homem possibilitou a existência da propriedade privada, que representou o retorno do aprisionamento ao limite do absolutamente necessário para grande parte da humanidade.       Enquanto categoria geral, o trabalho como “atividade adequada a um fim” tanto pode servir para tornar o homem sujeito de sua ação e vontade, quanto objeto da vontade de outros. O que vai definir isso é o fim, ou seja, a finalidade estabelecida.        Considerando que a finalidade estabelecida na sociedade capitalista é a acumulação, o caráter geral do trabalho, que permite ao homem ser sujeito de sua ação, assume nessa sociedade a condição de atividade que o submete à condição de objeto, já que só é possível acumular convertendo o outro em meio de acumulação.       O homem desprovido de capital assume na sociedade capitalista a condição de meio para a satisfação de fins privados estabelecidos por aquele que possui capital. Porém, cabe ressaltar que o sistema produtor de mercadorias não é “conseqüência de nenhuma determinação ontológica inalterável” (ANTUNES, 1999, p. 19), mas resultado de um processo historicamente constituído, passível portanto de superação.                     1.2- Do trabalho necessário ao trabalho estranhado na sociedade capitalista.                      Vivemos sob condições de uma desumanizante alienação e de uma subversão fetichista do real estado das coisas dentro da consciência (muitas vezes também caracterizada como “reificação”) porque o capital não pode exercer suas funções sociais metabólicas de ampla reprodução de nenhum outro modo. Mudar essas condições exige uma intervenção consciente em todos os domínios e em todos os níveis da nossa existência individual e social. (MÉSZÁROS, 2005, p. 59)              Compreendido o trabalho em geral como “atividade adequada a um fim”, é preciso ter claro que, a partir desse conceito mais amplo, é possível adjetivar o trabalho de diferentes formas. Abordarei trabalho necessário, trabalho abstrato e trabalho estranhado por se constituir uma necessidade para os objetivos conceituais desse estudo.       O homem necessita produzir sua existência e ele o faz pelo trabalho, sendo esta uma natureza específica de trabalho. Marx denomina o trabalho para a manutenção e reprodução da própria existência como trabalho necessário. Trata-se do “trabalho como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, [que] é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade, – é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana”. (MARX, 1996a, p. 50)       O trabalho necessário não é sinônimo de trabalho primitivo. É o trabalho como condição para a existência do homem, como criador de valor de uso, que existirá necessariamente em qualquer forma de organização da sociedade, inclusive se superada a sociedade de classes.       Se o trabalho necessário tem a possibilidade de existência em qualquer momento histórico, é preciso explicitar que nas relações sociais de trabalho ocorridas no contexto da sociedade capitalista, desenvolvem-se formas específicas de processo de trabalho.       Na produção artesanal, compreendida por volta do fim da Idade Média com o renascimento comercial e urbano, a produção era independente e o produtor possuía a propriedade dos meios de produção (instalações, objetos e instrumentos de trabalho) e do produto de seu trabalho. Trabalhando em sua própria casa, sozinho ou com a família, o artesão realizava todas as etapas do processo de produção. O trabalhador se servia das ferramentas ou instrumentos para o trabalho, que era desenvolvido com base no seu conhecimento e especialidade, possuindo liberdade para definir o ritmo de seu trabalho.       Essa forma de trabalho constituía-se numa atividade diretamente social, à medida que, na sua forma privada, o trabalho era dividido de acordo com idade, sexo, especialidade e a produção pressupunha a dispersão da propriedade dos meios de produção entre produtores independentes entre si.       Na transição do artesanato para a manufatura, mesmo que o trabalho continuasse a ser realizado em casa, já não era mais por conta própria: muitos dos artesãos passaram a receber a matéria prima do proprietário da manufatura, em troca de um pagamento previamente combinado. O trabalhador perde então a propriedade do objeto e do produto de seu trabalho por força de uma mudança na relação social de trabalho e não simplesmente uma mudança na divisão do trabalho na produção.       A manufatura, que no princípio era uma combinação de ofícios diferentes, passa progressivamente para um sistema que divide a produção em diversas operações especializadas. Nesse período, se concentra numa mesma oficina o trabalho simultâneo de trabalhadores de ofícios diversos, sob o comando do mesmo capitalista.       Nessa fase, além do trabalhador não ter mais a possibilidade de definir o ritmo do trabalho, do objeto e do produto do seu trabalho não lhe pertencer e ainda do fato de perder aos poucos a capacidade de exercer seu antigo ofício em sua completude, os instrumentos de trabalho também não lhe pertencem mais.       Na manufatura o trabalhador perde por completo a propriedade dos meios de produção, passando a possuir apenas sua força de trabalho para vender.       A concentração dos trabalhadores no mesmo local e a simultaneidade de seus trabalhos e ainda a propriedade dos meios de produção sob o domínio do capitalista, submete o trabalhador às condições de trabalho definidas pelo capitalista, às quais ele (o trabalhador) é obrigado a cumprir.       Mas o ofício, a habilidade profissional e pessoal do artesão, continua sendo a base do processo de produção na manufatura, que, mesmo parcelado no sistema de cooperação, cada processo parcial percorrido pelo produto tem de ser realizável como trabalho profissional de um artesão.       O trabalho que até a fase do artesanato podia se desenvolver de forma diretamente social e de certo modo independente, a partir da manufatura se subordina a uma forma particular de produção, a da sociedade capitalista, que “pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais realizam o trabalho” (MARX, 1996b, p. 30) e todas as conseqüências decorrentes dessa dissociação.       Trata-se da subordinação à forma social do trabalho promovida na sociedade capitalista, na qual o processo de trabalho subsume-se no capital. A isso Marx denomina subsunção formal do trabalho no capital:              O trabalho ontem independente cai, como fator do processo produtivo, sob a sujeição do capitalista que o dirige, e a sua própria ocupação depende de um contrato que, como possuidor de mercadoria (possuidor da força de trabalho), estipular previamente com o capitalista como possuidor de dinheiro. (MARX, 1969, p. 88)              Essa forma de produção particular do capitalismo possui leis internas que inclui a tendência a se expandir à escala social, de forma a atingir seu pleno desenvolvimento enquanto modo de produção, até que se tenha perdido toda a relação com a produção possível do indivíduo ou da sua família. Marx demonstra como a introdução da produção em escala e da maquinaria em um setor de produção, obriga a introdução do mesmo sistema em outros setores. Demonstra também que a expansão do modo de produção capitalista atinge progressivamente setores nos quais antes existiam unicamente artesãos independentes.        A expansão desse modo de organização da produção exige um mínimo determinado e sempre crescente de capital nas mãos dos capitalistas, e, à medida que esse aumento vai ocorrendo, o modo de produção capitalista adota dimensões sociais, generalizando-se, despojando-se de todo e qualquer caráter individual:              A produtividade do trabalho, a massa da produção, a massa da população e a massa da sobrepopulação, desenvolvidas por este modo de produção, suscitam sem cessar precisamente – com o capital e o trabalho agora disponíveis – novos ramos produtivos nos quais o capital pode trabalhar novamente em pequena escala e percorrer novamente os diversos estádios do desenvolvimento até que estes novos ramos de atividade começam também a ser explorados em escala social. É um processo contínuo. Simultaneamente, a produção capitalista tende a conquistar todos os ramos industriais de que até o momento ainda não se apoderou e nos quais ainda (existe) a subsunção formal. (MARX, 1969, p. 105)              Na fábrica (que representou o alcance dessa generalização do modo de produção capitalista no setor industrial), o trabalhador já não é mais capaz de produzir qualquer produto sozinho. Isso porque o desenvolvimento da maquinaria e a divisão pormenorizada do trabalho na produção tornaram este indiferenciado, parcial, indiretamente social. Além disso, é a maquinaria, sob o comando do capitalista, que passa a determinar o ritmo do trabalho e não o trabalhador. Torna-se o trabalhador um acessório da máquina. Não é mais ele que se serve da ferramenta, mas o contrário.       Não se trata somente do parcelamento do trabalho em diversas operações especializadas, com base em um sistema de cooperação, sob o comando de um capitalista. Essas condições já existiam na manufatura. Na fábrica, a divisão pormenorizada do trabalho propiciada por um sistema de máquinas, prescinde da habilidade específica de um determinado trabalhador.       Na fábrica, o processo de trabalho despoja-se de qualquer caráter individual, converte o trabalhador em um sujeito indiferenciado, exprimindo uma igualação social de diferentes formas de trabalho, que se realiza na forma específica de igualação dos produtos do trabalho.       Somente a partir da generalização desse conjunto de condições próprias do modo de produção capitalista, possibilitada pelo desenvolvimento da maquinaria, ocorre o que Marx denomina de subsunção real do trabalho no capital.       Na manufatura ocorre apenas a subsunção formal do trabalho no capital. Somente na fase da maquinaria passa a ocorrer também a subsunção real do trabalho no capital.       Esse trabalho igualado, indiferenciado, simples, subsumido realmente no capital, conseqüência da generalização do modo de produção capitalista, que produz valor e que não transfere qualquer característica específica do trabalhador individual ao produto do seu trabalho, Marx chama de trabalho abstrato.       O trabalho que produz valor de uso corresponde ao trabalho concreto. É o trabalho em geral, atividade orientada a um fim, desenvolvido na forma diretamente social, particular, individual. É categoria que está presente em todos os modelos de sociedade.       O trabalho abstrato exprime uma igualação social de diferentes formas de trabalho, que se realiza na forma específica de igualação dos produtos do trabalho. Tem que ser social e socialmente igualado e só se torna social na condição de trabalho impessoal e homogêneo. Portanto pressupõe uma determinada forma social de organização do trabalho: uma sociedade mercantil, na qual os produtores individuais não estão diretamente vinculados no processo de produção e sim indiretamente, já que este vínculo só se realiza no processo de troca. O trabalho abstrato é específico da sociedade capitalista.       Esclareça-se, que o trabalho concreto e o trabalho abstrato não são necessariamente atividades diferentes. Em um contexto de sociedade capitalista, a mesma atividade pode ser considerada em seus aspectos diferentes, os quais se distinguem por uma questão de melhor compreensão.       A esse respeito Marx esclarece:              Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores-de-uso. (MARX, 1996a, p. 54)               O mesmo ocorre com a subsunção formal e a subsunção real do trabalho no capital, que também não são rigorosamente e mecanicamente separáveis em absoluto. A subsunção formal é condição para a subsunção real do trabalho ao capital, que se apresenta somente a partir de um determinado desenvolvimento do modo de produção capitalista, no qual, capitais de certa grandeza se apoderam da produção.       Marx ilustra o processo de subsunção formal do trabalho no capital utilizando o mestre das corporações medievais, que, como componente de um modo de produção pré-capitalista, vai perdendo a capacidade de produzir aquilo que antes dependia de um longo processo individual de aprendizagem, que passava da condição de aprendiz para oficial, para depois chegar à posição de mestre.       Sob as leis do capital, que vai assenhoreando-se de todos os setores onde antes se encontravam apenas artesãos formalmente ou realmente independentes, o capitalista vai tomando o lugar do mestre artesão. E para isso é necessário antes suprimir todas as “limitações” existentes no negócio: 1) modificam-se as relações e a natureza do trabalho; 2) passa a produção a ser orientada pela própria produção e não pelo pedido dos clientes; 3) constituem-se determinadas condições nas quais o produto do trabalho aparenta não ser mais força produtiva do trabalho e sim força produtiva do capital.       No caso específico desse terceiro item, trata-se de uma relação de exterioridade, a qual é preciso explicitar e, para isso, faz-se necessário antes entrar em alguns pormenores da forma de exploração da força de trabalho no processo de produção capitalista.       Na sociedade capitalista o trabalho necessário à manutenção e reprodução da vida daqueles que não detêm os meios de produção é desenvolvido na forma de venda da própria força de trabalho para aqueles que detêm os meios de produção.       A força de trabalho assume a forma de mercadoria na sociedade capitalista, “enquanto for e por ser oferecida ou vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho.” (MARX, 1996a, p. 187)       Essa relação de exploração da força de trabalho na sociedade capitalista só é possível por se constituir como uma relação de produção entre produtores mercantis independentes, quais sejam: comprador e vendedor da força de trabalho – sujeitos econômicos livres, iguais, autônomos e independentes.       Cabe destacar que, no contexto da sociedade capitalista, numa relação de mercado, o que se denomina por “sujeitos econômicos livres” circunscreve-se nos limites da liberdade burguesa. Desse modo, essa igualdade não deve ser entendida no sentido de possuírem os indivíduos iguais meios de produção material, mas simplesmente pelo fato de que não se trata de trabalho escravo.       Tem-se de um lado o capitalista, proprietário dos meios de produção, disposto a comprar a força de trabalho alheia e de outro os trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho. “Trabalhadores livres em dois sentidos, porque não são parte direta dos meios de produção, como escravos e servos, e porque não são donos dos meios de produção, como o camponês autônomo.” (MARX, 1996b, p. 829-830)       É sabido o preço em vidas, escravização, assassinato, em suma, em violência, ocorrido na história da humanidade a favor da propriedade privada. Esses “trabalhadores livres” “só se tornaram vendedores de si mesmos depois que lhes roubaram todos os seus meios de produção e os privaram de todas as garantias que as velhas instituições feudais asseguravam à sua existência. E a história de expropriação que sofreram foi inscrita a sangue e fogo nos anais da humanidade.” (MARX, 1996b, p. 830)       Sendo a força de trabalho uma mercadoria na sociedade capitalista, é preciso esclarecer que mercadoria é a forma que os produtos do trabalho humano tomam quando a produção é organizada por meio da e para a troca, possuindo na sociedade capitalista duas características: a de possuir valor-de-uso e a de possuir valor. (MARX, 1996a)       Valor-de-uso já foi conceituado anteriormente neste texto, como a capacidade que um bem ou serviço tem de satisfazer necessidades humanas e valor é a forma social adquirida pelos produtos do trabalho que se manifesta numa coisa (mercadoria), no contexto das relações de produção capitalista e é determinado pelo tempo médio de trabalho socialmente necessário à produção de determinada mercadoria.       O tempo médio de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor-de-uso qualquer, em condições normais de produção e com o grau médio de destreza e intensidade de trabalho imperantes na sociedade, determinada sua magnitude pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Disso evidencia-se que o tempo de trabalho desperdiçado não cria valor. (MARX, 1996a, p. 46; RUBIN, 1980, p. 189)       Considerando que só o trabalho humano na forma de força de trabalho agrega valor à mercadoria, ou seja, somente o trabalho humano é substância do valor, é preciso dedicar especial atenção ao significado e às implicações do que se entende por valor.       Sendo o valor a expressão de uma relação social que se manifesta numa coisa (mercadoria) no contexto das relações de produção capitalista, trata-se de um conceito histórico, expressão de uma relação específica da sociedade capitalista, que transfere o produto do trabalho humano a uma dada mercadoria. O trabalho é então substância do valor das mercadorias na sociedade capitalista, não sendo sinônimo de valor. (MARX, 1996a; RUBIN, 1980)       Por sua vez, a força de trabalho comprada e vendida na sociedade capitalista é dividida em: tempo de trabalho necessário, que é o tempo de trabalho destinado à produção e reprodução da própria força de trabalho; e tempo de trabalho excedente, que é a parte do tempo de trabalho que excede o tempo de trabalho necessário. (MARX, 1996a, p. 242) É nesse último e somente nele que se produz mais-valia, que é a diferença entre o valor da força de trabalho e o valor que ela cria no processo de trabalho.       Sendo o valor da força de trabalho, como qualquer outra mercadoria, determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-la, o capitalista paga pela força de trabalho somente o tempo de trabalho necessário à sobrevivência do trabalhador (consideradas as condições históricas e sua qualificação), ficando com o produto do restante do tempo de trabalho do trabalhador. Por isso, o capitalista se esforça por extrair o quanto mais possível de trabalho excedente da força de trabalho: seja pela extensão da jornada de trabalho, que se converte no que Marx denominou de mais-valia absoluta, seja pela contração do tempo de trabalho necessário, pela intensificação do trabalho ou pela redução do custo de reprodução da força de trabalho, que alteram a relação quantitativa entre ambas as partes componentes da jornada de trabalho e que Marx denominou de mais-valia relativa.        Recebendo o trabalhador pela força de trabalho somente o suficiente para sua própria reprodução, o produto do seu trabalho pertence ao capitalista e o trabalho passa a ser um processo no qual o trabalhador nem se reconhece, nem se identifica e nem é proprietário do produto do seu próprio trabalho. Marx chama isso de trabalho estranhado, uma categoria própria da sociedade capitalista.              Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como [com] um objeto estranho estão todas estas conseqüências. Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tão mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio. [...] O trabalhador encerra sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador. Ele não é o que é o produto do seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo é. A exteriorização (Entausserung) do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (aussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele(ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha. (MARX, 2004, p. 81)              Assim, o trabalho na sociedade capitalista assume a forma de alheamento, ou seja, de atividade alheia à vontade do trabalhador, portanto involuntária, estranhada. Acerca disso Marx, ao demonstrar o processo de exteriorização do trabalho que, como atividade externa ao trabalhador, não pertence ao seu ser, no qual o trabalhador ao invés de se afirmar, nega-se nele, mostra ainda que, nesse trabalho, o trabalhador              não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer carências fora dele. Sua estranheza (Fremdheit) evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Ausserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. (MARX, 2004, p. 82-83)              O trabalho, que é condição para a existência humana e o ponto de partida do processo de humanização do ser social, tal como se objetiva especificamente na sociedade capitalista, torna-se degradado e aviltado. Torna-se atividade estranhada. (MARX, 2004; ANTUNES, 1998, p. 123-124)       Agora se tem os elementos mínimos para tratar da questão de que, na sociedade capitalista, aparentemente o produto do trabalho se apresenta como força produtiva do capital e não como força produtiva do trabalho.       Uma especificidade da sociedade capitalista é o fato de que as relações entre pessoas aparecem como relação entre coisas. Assim, as mercadorias, cujo valor nada tem a ver com sua forma física, nem com as relações materiais dela decorrentes e sim com o fato de serem produto do trabalho humano, ou seja, de uma relação social, parecem possuir valor por si e movem relações sociais. A isso Marx denomina fetiche da mercadoria, um processo no qual as propriedades conferidas à mercadoria produzem uma espécie de ocultamento das relações sociais peculiares ao capitalismo.       Marx consegue demonstrar que, na economia mercantil, as relações sociais de produção assumem inevitavelmente a forma de coisas e não podem se expressar senão através de coisas. Nesse modelo de sociedade as coisas assumem um papel social particular.       A produção de mercadorias constitui uma relação social entre produtores. No entanto, essa mesma relação aparenta a esses produtores como se fosse uma relação entre os produtos de seus trabalhos. Uma relação entre pessoas aparece como se fosse uma relação entre coisas: “as relações sociais entre alfaiate e carpinteiro aparecem como uma relação entre casaco e mesa nos termos da razão em que essas coisas são trocadas entre si, e não em termos do trabalho nelas materializado.” (BOTTOMORE, 1988, p. 150)       Na sociedade capitalista ocorre portanto a materialização das relações sociais e a personificação das coisas (MARX, 1996a, p. 81) e isso em função de que nesse modelo de sociedade a troca é a forma social do processo de reprodução do capital. “Este papel da troca, como elemento indispensável do processo de reprodução, significa que a atividade produtiva de um membro da sociedade só pode influenciar a atividade produtiva de outro membro através das coisas.” (RUBIN, 1980, p. 24)       A coisa ou mercadoria tem o poder de ocultar relações sociais na sociedade capitalista, na medida em que não demonstra em que condições foi produzida. E, seja qual for a forma social que assuma a coisa – mercadoria, meio de circulação, capital produtivo, etc. – parece que não é considerada expressão de relações humanas aderidas a ela, e sim como se tivesse características próprias, naturais. Nessa situação, ocorre um processo de personificação das coisas. A esse respeito Rubin exemplifica:              Ao possuir a forma social de “capital”, as coisas fazem de seu proprietário um “capitalista” e determinam de antemão as relações de produção concretas que serão estabelecidas entre ele e outros membros da sociedade. É como se o caráter social das coisas determinasse o caráter social de seus proprietários. Assim, é levada a cabo a “personificação das coisas”. Desta maneira, o capitalista brilha com a luz refletida de seu capital, mas isto só é possível porque ele, por sua vez, reflete um determinado tipo de relação de produção entre pessoas. (RUBIN, 1980, p. 38)              Na sociedade capitalista, não é a pessoa em si, ou qualquer característica pessoal ou profissional que define o que ela é, mas a posse ou não de determinada quantidade de capital.       A relação social na qual um homem entra na posse dos produtos do trabalho alheio, desprendendo-se dos produtos do seu trabalho, materializa-se, na sociedade capitalista, na troca entre coisas ou mercadorias, que oculta as relações de produção entre pessoas e move as relações sociais:              A coisa adquire as propriedades de valor, dinheiro, capital, etc., não por suas propriedades naturais, mas por causa das relações sociais de produção às quais está vinculada na economia mercantil. Assim, as relações sociais de produção não são apenas “simbolizadas” por coisas, mas realizam-se através de coisas. (RUBIN, 1980, p. 26)              Desse modo, pode-se compreender o correspondente dessa relação no que diz respeito ao ser humano, que, estando na condição de força de trabalho, portanto mercadoria, se coisifica.       A esse processo de materialização ou coisifição das pessoas, das relações sociais ou de valores, Marx denomina reificação, alertando, assim como o fez posteriormente também Georg Lukács, para a força reificadora das relações no sistema capitalista, demonstrando que à proporção que o sistema capitalista constantemente produz e se reproduz economicamente nos níveis mais altos, a estrutura da reificação penetra na consciência dos homens de maneira cada vez mais profunda, fatal e definitiva. (LUKÁCS, 2003, p. 211)       Apresentado um aspecto característico do processo de produção capitalista, qual seja, a personificação de coisas, há de se tratar também de outro aspecto: a coisificação ou materialização de uma relação social. O homem, que era sujeito, se converte em coisa ou objeto e a coisa ou objeto que o homem produz se converte em sujeito da sociedade. A objetificação, a coisificação do sujeito implica também a subjetificação, a personificação do objeto.        Em síntese, tomado o conceito geral de trabalho enquanto “atividade orientada a um fim”, é possível desdobrar, dentre outras, conforme Marx, as categorias de trabalho necessário, trabalho abstrato e de trabalho estranhado, constituindo-se os dois últimos em categorias próprias da sociedade capitalista. Na verdade são duas faces da mesma moeda.        Na sociedade capitalista existe então uma aparência de que o produto do trabalho seja força produtiva do capital e não do próprio trabalho; existe uma relação de fetiche da mercadoria, de coisificação das pessoas e de personalização das coisas; e o trabalho se apresenta como atividade estranhada.       O trabalho estranhado assume a característica de atividade forçada, visto que, para produzir sua existência no modo de produção da sociedade capitalista, o trabalhador é obrigado a vender sua força individual de trabalho pelo simples fato de não possuir os meios para produzir por si a própria existência.       É claro que a diversidade, heterogeneidade e complexidade do trabalho atualmente pode implicar também em uma diversidade de formas de estranhamento do trabalho e a acentuação do aspecto intelectual ou cognitivo em algumas formas de trabalho pode dar a aparência de que tal trabalho é menos estranhado do que outros.        Mera aparência. Ou, usando a terminologia propriamente marxiana: trata-se de uma relação fetichizada. No trabalho que parece dotado de maior significado intelectual, o trabalhador necessita pensar diuturnamente naquilo que é melhor para a empresa e seu projeto, que aparece mascarado pela necessidade de atender aos desejos do mercado consumidor:              Mais complexificada, a aparência de maior liberdade no espaço produtivo tem como contrapartida o fato de que as personificações do trabalho devem se converter ainda mais em personificações do capital. Se assim não o fizerem, se não demonstrarem essas “aptidões”, (“vontade”, “disposição” e “desejo”), trabalhadores serão substituídos por outros que demonstrem “perfil” e “atributos” para aceitar esses novos desafios. (ANTUNES, 1999, p. 130)              Note-se que o conceito que aqui utilizo de trabalhador refere-se à pessoa que tem apenas a sua força de trabalho para vender. Trabalhador não é, portanto, sinônimo de pessoa que possui emprego. Na sociedade capitalista, o trabalhador tanto pode estar na condição ativa de venda da sua força de trabalho, situação na qual se encontra empregado, quanto não, situação na qual se encontra desempregado.       No segundo caso, por falta de acesso do trabalhador às condições objetivas para produzir a mercadoria e, indiretamente, a própria existência, “sua força individual de trabalho não funciona se não estiver vendida ao capital” (MARX, 1996a, p. 413). Isso ocorre em função da propriedade dos meios de produção, que, no modo de produção capitalista, é privada. Disto decorre a natureza da divisão e organização do trabalho e de seu respectivo produto.       Pensar a superação do estranhamento no trabalho não implica negar o trabalho, já que todo homem, para existir, tem e sempre terá necessidades a serem supridas e essas necessidades são supridas por meio do trabalho. Independente do modelo de organização social vigente em determinado momento histórico, uma pessoa que não trabalhe para produzir os meios de sua existência só poderá estar vivendo à custa do trabalho do outro. Por isso, certa quantidade de trabalho será sempre necessária para garantir a existência humana.       Descarta-se então a defesa da possibilidade da existência de uma sociedade sem trabalho, hedonista, que viva totalmente livre do trabalho e apenas para o prazer. Isso seria tão ridículo quanto a nostalgia de uma “plenitude primitiva”:              O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce, desenvolvendo-se, o reino do imprescindível. É que aumentam as necessidades, mas ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas para satisfazê-las. (MARX, 1991, p. 942)              Não se tratando da negação do trabalho, trata-se da consideração de que, ao efetivar-se, o trabalho pode ser fonte de satisfação ou de insatisfação pessoal, de emancipação ou de alienação humana. Trata-se também de compreender o caráter alienador do trabalho abstrato e o potencial caráter emancipador do trabalho concreto.       A recusa do trabalho abstrato não leva à recusa da possibilidade de conceber o trabalho concreto como dimensão primária, ponto de partida para a realização das necessidades humano-sociais. (ANTUNES, 1998, p. 79-81)       A superação da sociedade do trabalho abstrato, estruturada na produção de valores de troca e sua conversão para uma sociedade fundada no trabalho concreto, criadora de coisas verdadeiramente úteis, supõe uma transformação radical do trabalho estranhado em um trabalho social que seja fonte e base para a emancipação humana, para uma consciência omnilateral. (ANTUNES, 1998, p. 79-81)              A liberdade nesse domínio só pode consistir nisso: o homem social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a natureza humana. (MARX, 1991, p. 942)              Assim, ações que reivindiquem a redução do tempo de trabalho, para estarem a favor da emancipação humana devem estar necessariamente articuladas com o fim da sociedade do trabalho abstrato e sua conversão em uma sociedade criadora de coisas verdadeiramente úteis, situação na qual “o trabalho deixa de ser determinado por necessidades e por utilidade exteriormente imposta” (MARX, 1991, p. 942) e efetive a identidade entre indivíduo e gênero humano.       Portanto, não é todo e qualquer trabalho que avilta e nem todo e qualquer tempo livre que libera. Tanto que a sociedade capitalista transforma inclusive o tempo livre em tempo de consumo, o lazer em mercadoria. No próximo item será possível verificar que o mesmo ocorre com a educação, já que não é todo e qualquer processo educacional que emancipa.                     1.3- A relação educação e educação escolar e seu potencial emancipador.                     E a educação não apenas cria a diferença entre os espíritos cultivados e os que não o são, como aumenta a existente entre os primeiros em proporção da cultura; porque, quando um gigante e um anão caminham na mesma estrada, a cada passo que ambos fizerem, haverá nova vantagem para o gigante. Ora, se se compara a prodigiosa diversidade de formas de educação e de gêneros de vida, reinantes nas diferentes ordens do estado civil, com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, na qual todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira, e fazem exatamente as mesmas coisas, compreender-se-á como deve ser menor a diferença de homem para homem no estado natural em relação à existente na sociedade, e a que ponto deve aumentar a desigualdade na espécie humana devido a desigualdade de instituição. (ROUSSEAU, 1991, p. 172-173)              Rousseau, ao discorrer acerca da origem e dos fundamentos da desigualdade entre os homens, já demonstrava que a educação pode constituir-se em um dos fatores que produz o aumento dessa desigualdade.       A educação é um processo portador de um potencial igualitário, assim como pode propiciar o aumento da desigualdade social. O que vai determinar isso são os fins estabelecidos ao se pensar, propor e desenvolver uma formação educacional. Por isso, as pessoas realmente comprometidas com uma proposta de educação emancipatória, sempre empunharam a bandeira da defesa da educação para todos, em um sistema único.       Desde Rousseau, passando por Gramsci e por inúmeros autores da pedagogia socialista como Pistrak e Makarenko e ainda mais recentemente e em se tratando de educadores brasileiros, passando por Anísio Teixeira e Paulo Freire, dentre outros, todos defendiam a universalização de um tipo de escola que propiciasse alcançar uma sociedade igualitária, sem privilégios, guardada a especificidade e a terminologia própria utilizada por cada um.       Gramsci chamou de “escola unitária” sua proposta de educação compreendida como um processo intencional de formação que se estendesse a toda a população no mesmo padrão de atendimento e de qualidade, mas, sobretudo, que articulasse uma formação ampla, que proporcionasse os elementos necessários à compreensão e intervenção na sociedade, assim como uma formação para o trabalho:              A escola unitária ou de formação humanista [...] ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa. [...] A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo das famílias, no que toca à manutenção dos escolares, isto é, que seja completamente transformado o orçamento da educação nacional, ampliando-o de um modo imprevisto e tornando-o mais complexo: a inteira função de educação e formação das novas gerações torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas. (GRAMSCI, 1989, p. 121)              É preciso salientar que a formação para o trabalho da qual Gramsci se refere não se destina a formar para o trabalho estranhado e sim para o trabalho como atividade emancipadora, necessária à manutenção da existência do homem, não admitindo o autor a possibilidade da existência de uma escola profissionalizante para pobres e outra de formação geral para ricos.       Tanto que, em 1916, como reação à proposta de um vereador liberal que propunha a criação de uma escola profissionalizante “útil e acessível aos operários”, ou seja, uma escola esvaziada de formação humanista (para tomar a expressão utilizada por Gramsci para referir-se a uma escola que contemplasse uma formação ampliada), o pensador italiano escreve o artigo “Homens ou máquinas?”, do qual o excerto abaixo parece bastante esclarecedor do tipo de escola que Gramsci propunha:              O proletariado precisa de uma escola desinteressada.[...] Uma escola que não hipoteque o futuro da criança e não constrinja sua vontade, sua inteligência, sua consciência em formação a mover-se por um caminho cuja meta seja prefixada. Uma escola de liberdade e de livre iniciativa, não uma escola de escravidão e de orientação mecânica.[...] A escola profissional não deve se tornar uma incubadora de pequenos monstros aridamente instruídos para um ofício, sem idéias gerais, sem cultura geral, sem alma, mas só com o olho certeiro e a mão firme. (GRAMSCI, 2004, p. 75)              Em se tratando da defesa de uma escola única, no contexto específico brasileiro, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, foi um grande marco ao defender a proibição legal da existência e da criação de escolas particulares no país. O pano de fundo dessa reivindicação era exatamente a proposição de uma escola única para ricos e pobres, de modo a não favorecer o aumento da distância entre o “gigante” e o “anão”, nos termos utilizados por Rousseau. Naquele momento, a proposta dos pioneiros já saiu derrotada para o poder dos representantes das escolas confessionais, que empunharam a bandeira do direito à liberdade de escolha das famílias. De lá para cá esse quadro só fez piorar e, atualmente, laicizado, o ensino privado é inclusive passível de ser financiado por recursos públicos.       Nos últimos anos o governo federal tem-se vangloriado de ter praticamente universalizado o acesso ao Ensino Fundamental. No entanto, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) detectou uma situação dramática nas escolas das redes de ensino de todo o país. Segundo dados de 2001, 59% das crianças da 4ª série, ou seja, com quatro anos de escolarização, ainda eram analfabetas. E o que é pior, a tendência detectada foi de uma queda progressiva nos padrões de rendimento escolar e as avaliações seguintes não têm demonstrado mudanças significativas nesse quadro. Ou seja, existe uma quase universalização do acesso a um ensino sem qualidade.       Ressalve-se que não estou afirmando que antes havia uma escola de qualidade. O que ocorreu nas duas últimas décadas foi a ampliação do acesso ao ensino fundamental no Brasil. A promoção da qualidade desta escola continua sendo uma questão importantíssima a ser enfrentada.       Além disso, é necessário salientar que o Brasil nunca efetivou um projeto de educação popular . Relacionado a isso, Celso de Rui Beisiegel demonstrou em diferentes trabalhos (1974; 1979 e 1992) que a educação para o povo no Brasil foi uma empreitada do Estado, “concebida e justificada pelas elites intelectuais como necessária à preparação da coletividade para a realização de fins determinados” (1992, p. 7). Essa educação de massas, que se distingue de educação popular pelo fato de não ter origem no interesse e vontade das camadas populares, explicitava claramente, ainda segundo Beisiegel, as suas origens ideológicas e sua função de controle social.       Para os fins deste trabalho importa deixar claro que um projeto de educação popular é potencialmente emancipador e incompatível com uma educação elitista, que é necessariamente excludente.       Antes de dar continuidade às discussões acerca do caráter potencialmente emancipador da educação, é preciso esclarecer que comumente tem se visto o uso dos termos “educação” e “ensino” como sinônimos, e essa confusão tem grandes implicações para a concepção dos objetivos do trabalho escolar, para a prática docente e para a natureza do trabalho educativo que se tem realizado no cotidiano escolar. Uma compreensão mais rigorosa de educação faz-se necessário para os fins desta tese e as reflexões de Paro podem ser aqui trazidas para auxiliar nesse sentido:              Na linguagem comum, educação é normalmente associada a ensino, quer para servir-lhe de sinônimo, quer para dele diferenciar-se. O uso diferenciado se dá, em geral, no senso comum, quando se associa a educação ao campo dos valores e das condutas, aquela por meio da qual se propicia ao educando formação moral e disposição à prática dos bons costumes e associa o ensino à passagem de conhecimentos e informações, contidos nas disciplinas teóricas ou nas ciências de um modo geral e que são úteis para a vida em geral ou para o exercício de uma ocupação. Nesse modo diferenciado de entender a educação e o ensino, a primeira é geralmente imputada ao lar ou ao seio da família e o segundo é atribuído à escola. Na conversa com pais de alunos, e mesmo com professores, se costuma ouvir que a educação se dá em casa e que na escola é o lugar da instrução (outro nome dado ao ensino para enfatizar seu caráter mais instrumental). Mas esses dois termos são também usados generalizadamente como sinônimos tanto no senso comum quanto nos meios acadêmicos, quando, por exemplo, se diz indiferenciadamente “educação básica” e “ensino básico”, para referir-se a questões ligadas a esse nível de ensino (ou de educação), ou quando se diz, indistintamente, “sistema de ensino” e “sistema de educação”, “ensino pré-escolar” e “educação pré-escolar” etc. (PARO, texto inédito b, p.1)              Na continuidade Paro demonstra que o desdobramento, a conseqüência da apropriação de uma concepção de que “educação” é sinônimo de “ensino”, é a forma anticientífica como se concebe a maneira pela qual a educação (ou o ensino) se realiza. Para a imensa maioria das pessoas a aparência da relação entre dois indivíduos que se comunicam é que acaba por prevalecer, e se acredita que educação (ou ensino) é a simples passagem de conhecimentos e informações de quem sabe para quem não sabe. Mesmo quando se trata de desenvolvimento de condutas e de aquisição de valores, a forma de educar consiste predominantemente na passagem verbalizada (oral ou escrita) de conhecimentos e de informações de quem educa para quem é educado. Ainda segundo Paro, nesse processo, o mais importante passa a ser o conteúdo a ser transmitido, aparecendo o educador como simples provedor dos conhecimentos e informações e o educando como simples receptáculo desses conteúdos, explicitando que, sob essas bases:              O que conta é o conteúdo, que pode ser mais ou menos rico, dependendo de sua quantidade e qualidade. Ao mesmo tempo, o conteúdo é visto como totalmente independente da forma, ou do método de ensino. Este, o método de ensino, por sua vez, ignora completamente as características e condições tanto de educador quanto de educando. Tanto um quanto o outro ficam como que “abstraídos” do processo. O papel do educador, de quem se espera que detenha o conhecimento, é o de apresentar, ou de expor determinado conteúdo ao aluno que, por sua vez, tem como obrigação esforçar-se por compreender e reter aquele conteúdo. O método de ensino (qualquer ensino) acaba reduzido, ao fim e ao cabo, a uma apresentação ou exposição de conhecimentos e informações, sem qualquer consideração pela subjetividade de educador e de educando. Por isso, em lugar de levar em conta os três elementos do processo (educador, educando e conteúdo) e suas mútuas relações para procurar organizá-los e criar as opções metodológicas de cada situação, o que se faz é concentrar as atenções apenas no conteúdo. As iniciativas didáticas consistem, então, em dispor e organizar esse conteúdo da maneira mais adequada a sua explicação pelo mestre e a sua compreensão e apreensão pelo aluno. Não faltam aqui as tradicionais máximas de se partir do simples para o complexo e do concreto para o abstrato. Mas as opções didáticas não são ditadas por características do educando ou do educador, mas do conteúdo: conhecimentos mais complexos, por exemplo, precisam ser desmembrados em parcelas mais simples para serem apreendidos. Mas o que prevalece é o contexto da explicação. O educador é, no fundo, um explicador de conteúdos.       Esta é, na verdade, a concepção tradicional de educação, há muito presente difusamente em toda a sociedade. [...] O mais dramático para o desenvolvimento da educação, é que é esta concepção tradicional que prevalece e orienta a prática escolar, no país, de um modo geral. (PARO, texto inédito b, p. 1-2)              O autor demonstra ainda que o fato de que em todos os níveis de escolaridade, do ensino fundamental à pós-graduação, com educandos dos mais diferentes estádios de desenvolvimento biológico, psicológico e social, os métodos e procedimentos de ensino são basicamente os mesmos. Por exemplo, em uma aula típica do primeiro ano do ensino fundamental ou no curso de doutorado, ocorre a vigência da mesma forma de relação entre educador e educandos: o professor explicando um conteúdo a um grupo de alunos sentados a sua frente e confinados em uma sala de aula, por um período de quatro a cinco horas diárias. Essa constatação confirma a forma anticientífica de educação que está presente no cotidiano do trabalho escolar. (PARO, texto inédito b, p. 2)       Mas o autor segue demonstrando que o mais problemático é que, orientada por uma concepção de educação do senso comum, que se pauta na mera transmissão de conhecimentos, os objetivos da escola têm sido muito pouco ambiciosos, restringindo-se apenas a isso: passar conhecimentos e informações. Ao fazer isso, a escola:               Renuncia à pretensão de uma educação que provê as necessidades culturais da personalidade do ser humano numa perspectiva de integralidade, ao deixar de lado todos os demais componentes culturais: valores, arte, ciência, filosofia, crenças, etc. O mais grave é que o problema não se reduz à pequenez do objetivo, mas inclui também o fato amplamente constatado de que, por pretender apenas isso, nem isso consegue realizar, visto que mesmo os conhecimentos e informações exigem, para serem assimilados e incorporados à personalidade do aprendiz, o envolvimento de outras dimensões culturais dessa personalidade, não considerados pela escola tradicional. (PARO, texto inédito b, p. 13)              Para os fins deste trabalho é preciso tomar esse conceito mais rigoroso de educação como apropriação da cultura em sua inteireza (que envolve conhecimentos, informações, valores, crenças, ciência, arte, tecnologia, filosofia, costumes, tudo enfim que o homem produz em sua transcendência da natureza), e não apenas parte dela, como faz o pensamento tradicional. (PARO, texto inédito b, p. 2)       Tomando a educação como um processo de “atualização histórico-cultural” (PARO, 2001a, p. 35) com vistas à emancipação humana, e, sendo a escola o espaço formal da sociedade cuja atribuição consiste precisamente em propiciar as condições para a “atualização histórico-cultural”, se depreende que o trabalho docente é o exercício da atividade cuja finalidade consiste em promover essa “atualização histórico-cultural” do educando, enquanto processo de formação humana, com vistas à sua emancipação.       Ao cunhar o conceito de educação enquanto processo de “atualização histórico-cultural”, que extrapola a mera transmissão de informações, Vitor Paro demonstra que é por meio dessa apropriação da cultura (entendida em sentido amplo), que              Cada um de nós construímos nossa própria personalidade humano-histórica e nos diferenciamos da mera natureza. E isso não se dá espontaneamente, naturalmente, mas como resultado de um complexo processo que precisa ser conhecido cientificamente, se quisermos proporcionar sua ocorrência. (PARO, 2004)              A educação escolar é então um processo que contempla a formação da personalidade humana, um processo obrigatoriamente perpassado pela transmissão de valores, de cultura, ao mesmo tempo em que promove a transmissão do conteúdo curricular programático. Não se trata portanto de mera atualização de conhecimentos e informações, como acredita o senso comum, mas da apropriação da cultura em toda a sua complexidade.       Note-se que esta não é apenas uma diferença de grau, ou de quantidade, mas uma diferença qualitativa. Segundo Paro, a educação é, pois, a apropriação da cultura produzida historicamente. Essa apropriação tem pelo menos duas dimensões intrínsecas: por um lado, é ela que possibilita a preservação do acervo cultural dando condições para a continuidade histórica; por outro, é a forma pela qual cada indivíduo se faz humano-histórico, processando-se sua necessária atualização histórico-cultural.       Como cada ser humano nasce puramente natural, é a educação que lhe propicia acesso à cultura produzida historicamente, eliminando ou reduzindo a defasagem que há entre o estado natural e a cultura vigente.       Em uma educação emancipadora, o educando deve ser tomado em sua possibilidade objetiva de constituir-se como sujeito da ação, pois que o homem “como ser ético, provido de vontade, se firma como ser histórico precisamente por sua condição de sujeito, de autor, condição esta que não pode ser negada sem que se negue sua própria condição humano-histórica.” (PARO, 2001a, p. 36)       Na educação, como em qualquer trabalho, “os meios não podem contrariar os fins” (PARO, 2001b, p. 49). Sendo assim, somente a partir do fim emancipatório estabelecido é que pode ser possível à atividade educativa elevar o homem à condição de sujeito.       Para os fins deste trabalho, tomo como orientadora do objetivo da educação em geral e da educação escolar na sociedade, sua perspectiva como atividade que propicie a formação do homem na condição de sujeito da história. Para isso, é insuficiente tomar a função da escola na sociedade como mero espaço de instrução.       Ao apresentar as bases do pensamento de Theodor W. Adorno no livro “Educação e Emancipação”, Wolfgang Leo Maar demonstra como, ao contrário de conduzir à emancipação, a formação cultural pode conduzir à barbárie, sendo o nazismo o exemplo acabado desse componente de dominação da educação. No capitalismo tardio de nossa época, ocorre um embaralhamento dos referenciais da razão nos termos de uma racionalidade produtivista pela qual o sentido ético dos processos formativos e educacionais vaga à mercê das marés econômicas. Assim sendo, a formação se desenvolveria como um déficit ético no capitalismo, como uma “semiformação”, que constitui a base social de uma estrutura de dominação, que favorece o comportamento de assimilação e adaptação das massas, canalizando os interesses ao existente. (LEO MAAR, 2003, p. 15-23)       Leo Maar demonstra, ainda seguindo o raciocínio de Adorno, que, no interior de uma sociedade burguesa, só há sentido numa educação para a emancipação, se for resultante da crítica e da resistência à sociedade vigente, responsável pela desumanização:              A educação crítica é tendencialmente subversiva. É preciso romper com a educação enquanto mera apropriação de instrumental técnico e receituário para a eficiência, insistindo no aprendizado aberto à elaboração da história e ao contato com o outro não-idêntico, o diferenciado. (LEO MAAR, 2003, p. 27)              Na continuidade do desenvolvimento de seu pensamento, Leo Maar demonstra o caráter potencialmente reacionário de uma educação que se pretenda meramente instrucional, já que não há conteúdo neutro, pois todo conteúdo é ensinado de uma determinada forma e argumenta que a recuperação da experiência formativa, a favor do “esclarecimento”, para tomar a expressão utilizada por Adorno e Max Horkheimer, permitiria reconstruir um padrão para o que seria efetivamente “racional”, sem o déficit emancipatório que a racionalidade instrumental impõe: “Esta não seria simplesmente uma necessidade ‘intelectual’, ou ‘cultural’, mas corresponde a uma necessidade material, já que tem a ver com os rumos da barbarização que inexoravelmente progride na sociedade vigente. É uma questão de sobrevivência.” (LEO MAAR, 2003, p. 27)       Numa referência direta ao iluminismo, que se efetivou a partir do esgotamento das formas de esclarecimento da Idade Média baseadas no mito, na metafísica e na teologia, substituindo-as pelo uso correto da razão, do saber, do conhecimento, da própria capacidade humana para resolver suas necessidades, medos e desejos, Adorno e Horkheimer tomam a expressão “esclarecimento” para, agora, diante de um “desencantamento do mundo”, construírem uma crítica rigorosa à razão moderna.       Sendo assim, a capacidade de conhecimento, domínio e uso da natureza, produzidos pelo homem a partir do iluminismo, a razão que poderia livrá-lo do mito, que deveria conduzi-lo fora de sua menoridade, transformou-se novamente em mito, na medida em que, colocando-se por inteiro a serviço da exploração da natureza e do homem, transformou-se em um novo encantamento. Trata-se portanto da radicalização da angústia mítica. É um movimento de desilusão para com a possibilidade de que a racionalidade humana contemporânea leve ao esclarecimento, ao contrário da posição otimista que orientou o esclarecimento do período iluminista.       Assim, Adorno segue tecendo a seguinte reflexão: se, no período em que viveu Kant, foi-lhe possível afirmar que não se estava vivendo uma época esclarecida, mas certamente em uma época de esclarecimento, hoje, passados mais de dois séculos que Kant elaborou esta observação acerca do mundo em que vivia, Adorno mostra que se tornou muito questionável afirmar, como Kant, que vivemos numa época de esclarecimento. Isso em face da pressão inimaginável exercida sobre as pessoas, seja simplesmente pela própria organização do mundo, seja em um sentido mais amplo, pelo controle planificado até mesmo de toda realidade interior pela indústria cultural .       Para recuperar a experiência formativa a favor do “esclarecimento” e como contraposição ao crescente processo de barbarização que toma lugar atualmente no mundo, a educação pensada por Adorno não se propõe como um processo de modelagem de pessoas e tampouco de mera transmissão de conhecimentos, cuja característica é de “coisa morta”, já que essa passividade aparentemente inofensiva constitui uma forma de barbárie. Sendo assim, Adorno (2003, p. 141) apresenta sua concepção de educação emancipatória enquanto “produção de uma consciência verdadeira”, uma “exigência política” para os que concordam que desbarbarizar é a tarefa mais urgente da educação hoje em dia.        Em contraposição à educação emancipadora, Adorno denomina como educação não-emancipadora aquela que contribui para a barbarização da sociedade.       Utilizando-se de outra terminologia, Paulo Freire igualmente propõe uma educação emancipadora pela via da educação popular, denominando-a “pedagogia crítica radical libertadora” (2000, p. 43), ou somente “pedagogia crítica” (2000, p. 115), ao defender que uma das primordiais tarefas dessa pedagogia é              trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta. É trabalhar a genuinidade desta luta e a possibilidade de mudar, vale dizer, é trabalhar contra a força da ideologia fatalista dominante, que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodação à realidade injusta, necessária ao movimento dos dominadores. (FREIRE, 2000, p. 43)              Ao educador que procura desenvolver a pedagogia crítica, Paulo Freire denomina “educador crítico” ou ainda “educador progressista” (2000, p. 44) e, na seqüência, alerta para os riscos de uma educação que se proponha meramente à instrução, distinguindo “treinamento” de “formação”, defendendo uma formação técnico-científica, alertando que o papel de um educador crítico ou progressista não se encerra no ensino, não importando que seja ele o mais competente possível na área de conhecimento que ensina. Alerta ainda para a necessidade de uma prática docente em que o ensino rigoroso dos conteúdos jamais se faça de forma fria, mecânica e mentirosamente neutra. (FREIRE, 2000, p. 43)              É por isso que o educador progressista, capaz e sério, não apenas deve ensinar muito bem sua disciplina, mas desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social, política e histórica em que é uma presença. É por isso que, ao ensinar com seriedade e rigor sua disciplina, o educador progressista não pode acomodar-se, desistente da luta, vencido pelo discurso fatalista que aponta como única saída histórica hoje a aceitação, tida como expressão da mente moderna e não “caipira” do que aí está porque o que está aí é o que deve estar. (FREIRE, 2000, p. 44)              No mesmo sentido, Emir Sader ao prefaciar o livro “A educação para além do capital”, de István Mészáros, lança a pergunta: “Para que serve o sistema educacional – mais ainda, quando público –, se não for para lutar contra a alienação? Para ajudar a decifrar os enigmas do mundo, sobretudo o do estranhamento de um mundo produzido pelos próprios homens?” (SADER, 2005, p. 17)       A esse respeito, Mészáros (2005, p. 44) mostra que se torna dispendioso e, em certa medida, desnecessário ao sistema capitalista disciplinar somente pela força a população em geral (leiam-se trabalhadores) às regras do sistema em questão. Por isso, e dado o grau de importância que tomou a indústria cultural atualmente, o capitalismo utiliza-se da educação para “internalizar” formas de conduta adequadas à reprodução do modo de produção capitalista.       É preciso abrir um parêntese nessa discussão de Mészáros a respeito da relação entre a utilização da coerção e da “internalização” de determinadas formas de conduta para a reprodução da sociedade capitalista, e remetê-la a Antonio Gramsci, que a fez anteriormente, denominando-a e caracterizando-a de “relação entre coerção e consenso” na sociedade contemporânea. Correspondente ao que Mészáros denomina “internalização”, Gramsci denomina obtenção do “consenso”.       Com base no pensamento de Marx, Gramsci denomina de “bloco histórico” o conjunto das relações sociais de produção formado pela estrutura e as superestruturas. (GRAMSCI, 1989, p. 52)       O conjunto das relações de produção forma a estrutura econômica de um determinado modelo de sociedade, as quais os homens estabelecem, na produção social de sua vida e que correspondem a uma determinada fase do desenvolvimento das forças produtivas.       Em termos gerais, pode-se dizer que a isso Marx denomina a estrutura econômica da sociedade, “a base real sobre a qual se ergue a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.” (MARX, s/d a, p. 301) A estrutura também pode ser denominada base ou infra-estrutura. Já a superestrutura diz respeito às representações políticas, jurídicas e ideológicas da estrutura.        Nas superestruturas, Gramsci distingue duas esferas as quais denomina: “sociedade civil” e “sociedade política”. Esta última designa precisamente o conjunto de aparelhos através dos quais a classe dominante detém e exerce o monopólio legal ou de fato da força: os aparelhos coercitivos do Estado. Mas, é no conceito de sociedade civil que está a grande contribuição introduzida por Gramsci, quando amplia o conceito marxista de Estado.       O conceito de Estado desenvolvido por Gramsci designa mais precisamente o conjunto das instituições responsáveis pela representação dos interesses de diferentes grupos sociais, bem como pela elaboração ou difusão de valores simbólicos e de ideologias. (COUTINHO, 1994, p. 53 e 54)       Note-se que foi possível a Gramsci, considerando o momento histórico em que viveu, no qual já estavam bastante desenvolvidas as características do Estado moderno perceber que              A estrutura do próprio Estado ganha nova complexidade, na medida em que este deixa de agir apenas com base na coerção e passa a incluir e a dar importância crescente aos elementos de persuasão. [...] Esta noção constitui uma ampliação do conceito de Estado em sentido estrito, na medida em que não ignora as funções coercitivas presentes em todo tipo de Estado, acrescentando-lhes, porém, as funções que são próprias da sociedade civil. (PARO, 1986, p. 85)              Poder-se-ia dizer então que, na sociedade atual, devido a um maior grau de socialização da política, fortalece-se a sociedade civil e os mecanismos de obtenção do consenso e utiliza-se menos, ou torna-se mais sutil, o uso da coerção da sociedade política, própria dos regimes tidos como autoritários. “Embora cada uma dessas duas esferas da superestrutura [sociedade civil e sociedade política] possua função e materialidade próprias, elas existem em permanente inter-relacionamento, não se registrando, na prática, uma nítida separação entre ambas.” (PARO, 1986, p. 84)       Levando-se em consideração a ampliação do movimento de busca do consenso e um uso mais sutil ou sofisticado da força da coerção é que as classes dominantes, percebendo que já não podem mais dominar pela simples coerção, como quase sempre o fizeram no passado, vêm tentando obter consenso e legitimação para o seu projeto de sociedade.       Após esse breve esclarecimento conceitual à respeito da utilização da coerção e do consenso no processo de reprodução da sociedade atual, pode-se retomar as reflexões de Mészáros sobre educação:              A questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema. Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma questão de “internalização” pelos indivíduos da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas “adequadas” e as formas de conduta “certas”, mais ou menos explicitamente estipuladas nesse terreno. (MÉSZÁROS, 2005, p. 44)              O entendimento de Mészáros acerca do que seja um sentido amplo de educação já é apresentado a partir das epígrafes do livro, as quais extraiu de Paracelso e de José Martí, quando esses demonstram que a aprendizagem é a nossa própria vida, da juventude até a morte e que ninguém passa dez horas sem nada aprender. Assim, Mészáros distingue educação, que é um processo que ocorre durante toda a vida do ser humano, de educação escolar, que ele denomina “estrutura educacional formal”. (MÉSZÁROS, 2005, p. 53)       Em tempos em que o consenso parece ser utilizado com maior intensidade do que a coerção (na concepção gramsciana dessas expressões), é preciso compreender a relevância que toma o processo formativo. Porém, Mészáros lembra que as instituições formais de educação certamente são uma parte importante do sistema global de “internalização”, mas apenas uma parte e que apenas a mais consciente das ações coletivas poderá livrar o homem dessa grave e paralisante situação. (ibid, 2005, p. 44-45)              Nessa perspectiva, fica bastante claro que a educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada uma sanção ativa – ou mesmo mera tolerância – de um mandato que estimule as instituições de educação formal a abraçar plenamente a grande tarefa histórica de nosso tempo, ou seja, a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no âmbito educacional, as soluções “não podem ser formais; elas devem ser essenciais”. Em outras palavras, eles devem abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida. (MÉSZÁROS, 2005, p. 45)              A partir desse entendimento, Mészáros não propõe uma mudança (reforma) no sistema educacional formal, mas sim, uma intervenção mais ampla, no plano da essência e não da forma, utilizando a possibilidade emancipadora da educação compreendida como um processo que perpassa por toda a vida do ser humano,              já que o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas, e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente. [...] Portanto, não é surpreendente que na concepção marxista a “efetiva transcendência da auto-alienação do trabalho” seja caracterizada como uma tarefa inevitavelmente educacional (MÉSZÁROS, 2005, p. 65)              Sem cair em um dos dois reducionismo, seja o econômico ou aquele que representa a autonomização da superestrutura com relação à estrutura econômica, é preciso aqui enfatizar que a relação entre esses dois aspectos na organização social capitalista não é tão simples assim, já que o movimento da história não é linear, e, às vezes, a produção material se desenvolve de forma desigual com relação à produção artística, jurídica, etc.        A superestrutura não é determinante das relações de produção na sociedade capitalista. O determinante econômico é preponderante no estabelecimento das relações de produção e no modo pelo qual é assegurada a subsistência numa dada sociedade. Mas isso não quer dizer que a superestrutura é um reflexo passivo, nem mesmo que ela é autônoma, mas dotada de certa eficácia própria, que pode variar em cada momento histórico.       Atualmente, dado o grau de desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, da microeletrônica, dentre outros fatores, que fazem com que cada ser humano seja abordado centenas de vezes ao dia pelos mecanismos de informação e formação, a superestrutura tomou maior importância no que diz respeito ao seu papel e sua força no processo de manutenção das relações capitalistas, do que em momentos históricos anteriores, nos quais os sistemas de comunicação não possuíam a intensidade e diversidade atuais.       Levando isso em consideração, Mészáros segue salientando que, por maiores que sejam as soluções formais, mesmo que sacramentadas pela lei, elas podem ser invertidas desde que a lógica do capital permaneça intacta como quadro orientador da sociedade. Desafiar o sistema capitalista por meio de reformas formais, mudanças institucionais no sistema educacional, é submeter-se a um fracasso antecipadamente sabido. (2005, p. 47)       É preciso enfatizar aqui a relação parte/totalidade da educação e mesmo da educação escolar com a sociedade em geral. Ou seja, a educação, per si, não é capaz de transformar a realidade. No entanto, ela contém os mesmos elementos da realidade social mais ampla. Ela é um componente da realidade social mais ampla, contendo em si, guardada a sua especificidade, as mesmas tensões havidas por conta das relações de poder, alienação e luta hegemônica. Por isso, faz sentido dizer que a educação, sobretudo a educação escolar, não é capaz sozinha de mudar a realidade como um todo. Contribui para isso, mas uma mudança na educação sem uma correspondente mudança na sociedade em geral está fadada ao fracasso. A educação não é o processo revolucionário, mas pode ser um dos processos revolucionários da história.       Absolutamente coerente com esses pressupostos, Mészáros além de demonstrar que a mudança não pode ser apenas formal, mas sim essencial, apresenta a necessidade urgente de uma atividade de “contra-internalização”, que não se esgote na negação, mas em uma abordagem educacional que leve em consideração a totalidade das práticas político-educacionais-culturais, na mais ampla concepção do que seja uma transformação emancipadora, uma contraconsciência estrategicamente concebida como alternativa à “internalização”. No entanto, esta tarefa é demasiado grande para a educação formal e impossível de se realizar sem um progressivo e consciente intercâmbio com processos de educação mais abrangentes.       Mészáros também propõe a universalização da educação e do trabalho como atividade humana auto-realizadora, desafios que são apresentados de forma indissociável pelo autor, que tem como premissa a articulação de trabalho e educação como sustentáculo de outra ordem social, pois ambos, universalizados e autônomos, são condição necessária para uma sociedade não alienada e auto-gestionada.       Um outro autor que considera esse tema sob a mesma perspectiva é Paul Lengrand, quando considera que o processo de transformação é perene e que a “a educação do homem não termina com o fim da escolaridade, seja ao nível primário, secundário ou universitário, mas decorre durante toda a sua vida” (LENGRAND, 1971, p. 30), fazendo-se necessária e adequada a compreensão de inconclusão do processo educativo, o que leva também à perspectiva de educação permanente.       O autor enfatiza, ao falar de educação permanente, que “não se pode falar duma idade de educação; a educação é com efeito uma maneira de viver, uma maneira de estar no mundo e, mais especificamente, uma maneira de estar atento ao mundo.” (LENGRAND, 1971, p. 36) Desse modo, é preciso repensar a concepção de educação que orienta uma sociedade e, por conseqüência, um sistema educacional, cindido em duas partes: a primeira delas que tem a função de habilitar o futuro adulto com tudo o que ele possa vir necessitar para o decurso de toda a sua existência e a segunda, na qual o adulto deva desfrutar da formação e conhecimento acumulados na primeira fase.       Em uma sociedade que não separe educação e trabalho, como duas fases distintas na vida do ser humano, a educação formal deverá tratar menos de ensinar matérias, por exemplo, do que de fornecer ao futuro adulto instrumentos de expressão e comunicação de que virá a ter necessidade durante a vida. A atenção maior deverá incidir sobre o domínio da linguagem, o desenvolvimento das capacidades de atenção e de observação e o hábito de trabalhar em equipe. (LENGRAND, 1971)       Uma outra conseqüência dessa mudança de concepção é o atenuante da noção de fracasso e de êxito. No sistema educacional atual, marcado por ritos de iniciação, conclusão, exames, diplomas, o êxito e o fracasso são seus componentes fundantes. Em uma perspectiva de educação permanente, em vez de centrar-se naquilo que atualmente é tido como fracasso e sucesso, dever-se-ia auxiliar as pessoas a viver o risco e fazer com que o considerassem como mais uma das possibilidades do homem e não como elemento nocivo. “Tal atitude só será possível quando as ciências não forem apenas matérias de programa mas quando todo o ensino, nos seus métodos e comportamentos, for imbuído do espírito científico.” (LENGRAND, 1971, p. 43)       Sabendo-se que não existe neutralidade cientifica, faz-se necessário pensar nos fins de uma educação permanente, o que reflete uma intencionalidade, uma perspectiva política e não apenas científica para que possa haver de fato a emancipação. Esse parece ser um limite no pensamento de Lengrand quando deposita na necessária cientificidade da educação formal, o fator que possa promover a mudança de uma sociedade cindida para uma sociedade que tome a educação enquanto processo permanente.       Fora isso, apresenta-se no texto de Lengrand uma similaridade com o texto de Paulo Freire, no que diz respeito à idéia de inacabamento do homem e conseqüentemente da perspectiva de educação para toda a vida.        Em diversos textos Paulo Freire apresenta claramente que pensar a educação enquanto processo que perdura por toda a vida do ser humano pressupõe a compreensão do “inacabamento ou a inconclusão do homem”. (FREIRE, 1993, p. 27) Essa condição de “inacabamento” obriga a pensar em uma educação permanente, a qual deverá estar subordinada aos fins estabelecidos, que poderão estar a serviço da emancipação humana, assim como a serviço da alienação, representando esta última a manutenção da ordem social estabelecida atualmente.       O estado de inconclusão do homem permite afirmar sua possibilidade histórica de estar no mundo a serviço da emancipação humana ou do seu contrário e, a partir da conceituação de Gramsci, Adorno, Mészáros, Lengrand, Paulo Freire e de Vitor Paro, até aqui explicitadas, o que estou tentando demonstrar é que todos apresentam elementos para a defesa da educação a favor da emancipação humana.        Partindo da premissa de que os meios não podem contrariar os fins, ou que “meios inadequados podem desvirtuar os fins ou comprometer o seu alcance” (PARO, 2001b, p. 49), pode-se dizer que os meios a partir dos quais se desenvolve o processo de aprendizagem , devem ser escolhidos e desenvolvidos de forma a propiciar um processo de aprendizagem que tome o educando sempre na condição de sujeito e não de objeto, já que essa é a finalidade da educação emancipatória. “Não sendo o fim da educação, mas sua mediação, o processo pedagógico só pode considerar-se bem sucedido se logrou o alcance dos objetivos.” (PARO, 2001a, p. 37)       Se a educação não é necessariamente um fator de emancipação humana, então não se trata tão-somente do uso adequado de metodologias com o objetivo de transmitir determinados conteúdos curriculares. Trata-se da seleção e organização intencional de conteúdos e metodologias, que se sabe não são transmitidos de forma neutra, mas permeados por valores, que são a tradução de uma determinada concepção de sociedade, de homem e de função da escola na sociedade. Por isso é que faz sentido dizer que o professor ensina tanto pelas suas palavras quanto pelas suas ações.       Tomando a avaliação escolar (um dos componentes do processo pedagógico) para exemplificar tal situação, parece claro que de nada adianta um professor dizer que seu trabalho é orientado pela perspectiva da emancipação humana, se no processo de avaliação de seus alunos o faz de maneira autoritária; se na relação professor-aluno, ridiculariza seus educandos ou os trata numa condição de inferiorização, pois que “a assunção do educando como sujeito deve conduzir à consideração de que os métodos avaliativos não podem violar essa condição sob pena de tomar o aluno apenas como objeto.” (PARO, 2001a, p. 37)       A ação educativa tomada em seu sentido emancipatório e por conseguinte com a finalidade de “contra-internalização”, nos termos de Mészáros, ou de “desbarbarizar”, nos termos de Adorno, só ocorre quando o educador relaciona forma e conteúdo escolar permeados pelo objetivo de levar o aluno a ser sujeito de suas próprias ações, da própria história, na vida em sociedade. Fora disso, a ação pedagógica ao invés de estar a serviço da formação humana, estará a serviço da deformação ou conformação humana, transformando o homem em objeto da ação de outros.       Sendo assim, não é preciso repetir aqui o esforço empreendido e bem sucedido de grande parte da produção científica da Educação, Sociologia, História, Economia e Política, quando demonstra que a educação pode estar e esteve muitas vezes a serviço da reprodução das relações de dominação vigentes, tanto na sociedade capitalista como em modelos anteriores de organização social.        A partir dessas considerações, pode-se depreender que um sistema de educação com finalidade emancipatória deve ser único, pensado e construído enquanto educação popular, sem tolerância para propostas elitistas, cujo objetivo é manter ou aumentar a diferença entre o anão e o gigante, nos termos da metáfora de Rousseau. E o trabalho docente progressista, correspondente a um processo educacional crítico radical libertador, é uma ação essencialmente humanista e humanizadora, que tem o objetivo de promover a emancipação “intelectual e moral” (GRAMSCI, 1989) de toda a população e não apenas de parte dela, não se resumindo, portanto, em uma missão de ajuda movida pela compaixão às camadas mais pobres da população. Ou seja, não se confunde com e não se restringe a uma ação humanitária.